Capítulo 9 - Auribus Teneo Lupum

https://8circulos.com.br/uploaded/21_10_2020_10_-_07_pm_5f90b1279380c.jpg

O olhar para aquele trevo de três folhas, que havia encontrado grudado entre os vãos do piso na porta do hospital, revelava o excesso de cansaço e os primeiros sinais de revolta com relação ao silêncio da China quanto ao que estava acontecendo.

Seus pensamentos retrocederam as semanas antes, quando seu professor tinha falecido, e então resolveu sair dali, em busca de ajuda.

Primeiro, talvez para inspirar, ou talvez desabafar, caminhou até o cemitério onde ele estava enterrado. Olhou a lápide e leu, com os olhos encharcados de lágrimas: “A natureza o fez e a natureza o levou”.

Sentindo um calor percorrer a garganta, saiu de lá correndo e em busca de alguém para ajudá-la, caminhou até o centro de pesquisas da faculdade onde Win trabalhava e pediu para falar com os seus assistentes mais chegados.

Assim que os encontrou, um pouco ofegante,  pela corrida e pela timidez que sempre a dominava, contou tudo que estava acontecendo nos hospitais, a correria, os tratamentos, ou falta deles, o aumento do número de pessoas com doenças respiratórias, a forma com que a superiora dela a tratava, a desconfiança com relação a forma da morte de Win, enfim, desabou a falar tudo que sabia, ou no caso, achava que sabia.

Holan e Muld se entreolharam e a chamaram para conversar em uma sala mais apropriada. E pedindo que ela se sentasse, começaram a falar baixo e pausadamente.

- Nós já estamos sabendo o que está ocorrendo, na verdade, estamos envolvidos na pesquisa que está estudando uma nova cadeia de vírus da cadeia sarscov-2 e acreditamos que possui um alto nível de transmissão e de possível letalidade.

- Então o porquê isso ainda não foi noticiado ao mundo? As pessoas precisam se proteger. Falou rapidamente e sem pensar. Seguido de um silêncio de um minuto, perguntou: Existe alguma possibilidade de nos proteger?

- Não sabemos de nada definitivo ainda. É algo novo, não tem nada conclusivo, somente similaridades com outros vírus, principalmente com um vírus dessa linhagem que já é encontrado em uma determinada raça de morcegos. Outro animal que detectamos com o “parentesco” desse vírus foram os “Pangolins”, vendidos ilegalmente aqui na China pela sua carne, escamas e uso na tradicional medicina chinesa, o qual também poderia ter sido um hospedeiro para esse vírus. O problema é que devido ao tipo de formação desse vírus, descobrimos também, que essa mutação sofrida, que pode atingir o ser humano, não foi recebida diretamente destes animais, existiu algum receptor antes e este ainda não conseguimos descobrir qual é e como isso ocorreu. E Holan abaixou a cabeça não sabendo mais o que dizer.

-Ok. Vamos pensar. Eu não sou cientista, sou estudante de medicina. Apenas estou lidando com os fatos. O professor Win, já estava sabendo do que estava acontecendo?

- Na verdade, não sabemos. Ele estava trabalhando em um projeto sozinho aqui na Faculdade. Ele não deixava que ninguém entrasse em sua sala particular e quando ele veio a falecer, vieram uns homens, sérios e bem vestidos e remexeram e recolheram toda a pesquisa que ele estava fazendo, levando anotações, livros, computadores, absolutamente tudo.

- Nós desconfiamos de algo muito errado, mas não tínhamos indícios de nada do que estava acontecendo até que o hospital nos notificou de algumas internações muito suspeitas durante o mês de dezembro, culminante em morte de alguns pacientes no início de janeiro.

- Grande parte dos pacientes internados eram clientes assíduos do mercado de carnes de Wuhan, então, correlacionamos com os trabalhadores de lá, que vendem vários tipos de carnes , peixes vivos, pássaros, entre outros animais e mais de 700 pessoas estão sendo monitoradas, dentre eles, mais de 400 médicos e enfermeiros, inclusive você.

-Eu? Por isso tantos exames de sangue pedidos estes dias. Respondeu ela, caindo em si.

- O governo chinês está sofrendo alta pressão para divulgação dessas pesquisas ao mundo, mas estamos tentando saber algo mais, pois levaremos uma notícia catastrófica de talvez uma possível pandemia em escala mundial, sem saber como, quando e o porquê. Por isso, apesar de entendermos o seu desespero de levar a público, pedimos o seu silêncio só por mais alguns dias para que possamos restabelecer pelo menos uma certa ordem e prepararmos o pouco material que temos para divulgação.

Raquel, saiu de lá com a cabeça mais do que doendo, com os sentimentos misturados, de contentamento por estar certa e de tristeza, pelo mesmo motivo.  E agora? O que fazer? Apesar de todas as incertezas, talvez tudo estava se resolvendo e como outros vírus, este também seria controlado. Será que Win tinha morrido dessa doença? Será que ele tinha se contaminado por estar pesquisando? Será que...

E aí ela parou de andar e sentindo uma vertigem, se sentou por um momento em um banco que fica bem no meio da universidade para respirar um pouco mais fundo... E falou para si mesma como um murmúrio... E se ele que tivesse criado ou usado o “intermediador”?

Confusa, cansada e preocupada, Raquel, só pensava em voltar para casa e conversar com o Grupo o que tinha descoberto. Liz e Charlie, já estavam sedentos de mais notícias após aquela noite de Natal que passaram juntos. Haviam decidido visitar uma série de hospitais e universidades, falar com conhecidos nas áreas médicas, mas até o momento aqui no Brasil, parecia que nada disso ainda fazia qualquer sentido.

Quando Raquel retratou o momento em que estavam vivendo, caiu como uma bomba no colo de todos, Charlie passou a ter certeza do fim do mundo, Liz pensou que talvez fosse o furo de reportagem que ela precisava para voltar a viver, Mike e Thony, que ainda estavam na casa da irmã de Thony, dessa vez, deram atenção e viram que aquelas maravilhosas férias estavam por acabar e J.D. chegou a conclusão que era hora de contar a Liz quem ele era.

Raissa, havia se despedido daquela família que a tinha abrigado por tanto tempo e decidiu que tinha que voltar para seu caminho. Estava com medo e receio do que poderia acontecer com ela, mas muito preocupada com o seu pai e seus amigos, decidiu que tinha que voltar a ter contato com a “civilização”.

Conseguiu uma carona até a cidade mais próxima e conseguiu contato com um dos seus amigos italianos que faziam parte da rede de ajuda aos libaneses, buscando saber notícias do seu pai. Ficou sabendo que ele estava muito preocupado com ela, mas que estava bem, seguro, na casa de conhecidos. Ela pediu para entregar o recado para o pai dizendo que ela estava bem e que estava voltando para Beirute, era o que ela tinha decidido, depois de tudo que havia passado, não se sentia mais segura mesmo, onde estivesse.

Raissa não tinha praticamente nada, mas seu amigo que tinha o contato de seu pai, lhe conseguiu roupas novas e um lugar para ficar por enquanto. Conseguiu também um computador e alguns alimentos para passar uns dias, até ela conseguir decidir como ela faria para voltar.

Ávida por notícias, entrou nos sites de buscas para saber tudo que estava acontecendo no mundo, tentando se atualizar, verificando o que tinha perdido até o momento, percebeu as inúmeras conversas do seu grupo na intranet e mergulhou em uma chuva de expectativas e emoções.

Todos estavam estranhando o sumiço de Raissa por tanto tempo e quando Raissa começou a escrever contando tudo que havia acontecido com ela, mal acreditavam no que leram, cada um, começou a escrever uma coisa, pedindo riqueza de detalhes.

Liz, que devido ao interesse pelo jornalismo já teria o interesse nato, mais uma vez, suspeitava que não se tratava de coincidência um homem de terno aparecer em um momento difícil como aquele.

Um homem com as mesmas características estava na igreja, ao mesmo tempo no hospital em Wuhan e agora na Itália, dentro do que parecia um bunker escondido no meio do deserto.

Ela, que não acreditava no sobrenatural, tentava buscar uma explicação razoável para aquelas coincidências, talvez fossem pessoas diferentes, somente com as mesmas características, talvez fosse coisa da cabeça dela querendo começar a acreditar em alguma coisa maior que ela. A necessidade e o desespero às vezes fazem com que desenvolvamos monstros ou heróis dentre da gente, pensava ela.

Liz lembrou de uma das conversas com Charlie na noite de Natal, quando ele insistia que era do passado e foi salvo por um homem grisalho, dizendo que ia algo iria acontecer e ele serviria aos seus propósito e ela rindo da situação, disse para ele que deveria parar com as “drogas”.

Será que então, não era tudo um absurdo e coincidência, será que tudo aquilo poderia ter uma conexão? Porque aquele “grupo”, “aquelas” pessoas” e porque ela?

Wuhan amanheceu trancada. 23 de janeiro de 2020. O Governo Central chinês impôs lockdown em Wuhan e outras cidades na província de Hubei em um esforço para conter a pandemia do novo Coronavírus. O Bloqueio estabeleceu o precedente para medidas semelhantes em outras cidades chinesas, poucas horas após o bloqueio de Wuhan, também foram impostas restrições de viagens. Afetando um total de cerca de 57 milhões de pessoas.

O Governo da China já havia noticiado ao mundo, sobre a Pandemia, na semana anterior. Os conhecidos de Raquel tinham dado uma série de entrevistas para um grande número de canais de televisão, mas o mundo não havia dado atenção naquele momento. Os países do outro lado mundo, achavam que seria mais uma doença que ficaria localizada na Ásia e nestas horas parece que o mundo não é tão globalizado assim, os Chineses que se danassem.

Raquel começava o seu plantão as 06h00 da manhã, mas naquele dia, não se sentiu bem para sair de casa. Febre, suores, dor de cabeça e uma tosse insistente, não queriam deixar seu corpo e a única e última mensagem daquele dia, que ela enviou para o grupo foi:

- Hoje eu não vou trabalhar, não estou me sentindo bem, eu espero não estar contaminada, estamos fazendo muitos testes por aqui. Vou lá, descansar um pouco e depois nos falamos!

Uma nuvem negra se instalou na mente de todos naquele grupo, durante alguns dias não se teve mais notícia de Raquel.

Raissa, em meio àquela solidão e loucura, queria voltar a ficar com seu pai no Líbano e achou que a melhor saída e mais rápida seria se entregar as autoridades “verdadeiras”, imaginando que eles a colocariam no primeiro avião de volta para lá. E foi o que ela fez, no dia seguinte, amanheceu bem cedo na porta do consulado Libanês e em dois dias depois já estava vendo do avião o porto de Beirute com os olhos marejados de emoção.

No dia 26 de janeiro, Mike e Thony, que ainda estavam em Mineápolis. na casa da irmã de Mike, assistem Trump dizer na Televisão que há apenas um caso de Coronavírus confirmado nos EUA vindo da China e que não há o porquê dos americanos se preocuparem, que o risco é baixo e que tudo ficaria bem. Eles que já não acreditavam muito no presidente antes disso, agora tinham a certeza de que, o que estava acontecendo na China estava se espalhando e Mike pede a Thony que ficassem por ali, para ajudar sua irmã e  talvez até a mãe, já que a cidade de seus pais não ficava tão longe dali. Thony concordou na hora e mesmo acreditando que só um fim do mundo podia reunir Thony e seu pai novamente, não teria tanta criatividade para imaginar que um mês e meio depois, a maior economia do mundo, se tornaria o maior epicentro mundial da pandemia de covid-19.

Charlie, tentava de todas as maneiras contato com “aquele” que o tinham salvado para saber quais seriam as ordens para aquilo que estava por vir, mas nada daquele “velho safado” aparecer. É óbvio, que o homem misterioso não tinha um telefone celular para contato, nem mesmo um lugar o qual se pudesse mandar cartas, mas, Charlie, sabia que tinha que dar um jeito.

Ele pensou em talvez voltar a Floresta Amazônica, lugar, que ele havia aparecido tantos anos antes, mas não tinha ideia como encontraria a sua velha amiga, Aiyra. Eles se separaram no momento que ele optou em estudar e ela em cuidar da sua terra.

Sentado, em um dos bancos de um dos terraços mais altos da avenida Paulista, o terraço do Sesc, ficou contemplando o horizonte por mais de uma hora e tomando o café que tanto gostava em meio daqueles turistas, começou a sentir como se o ar que estava respirando estivesse ficando mais pesado e difícil de inspirar.

Ao seu lado, sentou uma mulher, com um vestido verde água, do tipo daqueles usados na  década de 30, de cabelo bem curtinho, como se tivesse sido cortado por ela mesma sem muito cuidado, de mais ou menos uns 40 anos, com os olhos fundos marcados por olheiras extensas e com um sorriso frouxo, começou a puxar papo.

- Bonita a vista daqui de cima né? Disse ela a ele, querendo mostrar admiração pela beleza daquele céu.

- Maravilhosa. Venho sempre aqui quando eu quero pensar. Respondeu ele, não olhando muito para ela.

- Você sabe que quando a gente pensa muito em alguém, ele acaba te ouvindo e que se formos especiais, quando este alguém não pode vir falar com você, ele manda pessoas como eu para te buscar? E ela coloca a mão dela em cima da dele.

E não esperando aquele comentário e nem aquele toque, ele virou-se para ela e em um piscar de olhos, aconteceu de novo.

Três horas da tarde e Liz passa pela porta sem perguntar a ninguém se pode entrar. Espumando de raiva, solta xingos e ofensas para cima de J.D.

- Seu Filho da puta. Você sabia quem eu era o tempo todo. Eu toda ferrada aquele dia e você nem para me ajudar ou me contar. Me humilhou. Você não pode fazer parte do nosso grupo! Você é um bandido! E continuou dilacerando ofensas por mais um tempo.

Os seguranças tentaram segurá-la, a agarrando, mas J.D. pediu para que a soltassem, antes que alguém se machucasse.

Ela só acalmou um pouco depois que cuspiu no chão, na frente dele.

- Calma Liz, eu vou te explicar como vim parar aqui e você vai ver que não sou uma pessoa tão má quanto você imagina.

Contrariada, ela sentou e ele começou a falar. Começou contando toda a história dele e como ele foi parar ali. Entre uma respirada e outra, podia-se ouvir as meninas ensaiando para a festa de carnaval que ia ter lá na boate nos próximos dias.

- E aquela história de Papai Noel? Você quase foi linchado... Liz falou já mais calma, até com uma pitada de sorrisinho no canto da boca.

- Foi uma péssima ideia. Eu queria saber como seria a reunião de vocês, se teriam mais informações, o Charlie, não é muito claro quando a gente fala pela net, ele fala em códigos, usa essas ideias loucas de viagem no tempo como se fossem verdade. Achei que pessoalmente eu ia conseguir algo melhor de vocês. Como você percebeu, não deu certo. Respondeu ele olhando para o nada e deixando um silêncio no ar.

 E ela séria, olhou bem para os olhos dele e disse:

- Você acha que essa doença está vindo para cá também? Ou melhor, que já está aqui?

- Não sei. Mas o Carnaval está logo ali e o show não pode parar.

E a terça feira de Carnaval foi dia 25 de fevereiro de 2020.

 Primeiro caso oficial de Coronavírus no Brasil: 26 de fevereiro de 2020.

Situação do Brasil em 20 de outubro de 2020: Mais de 5 milhões de infectados e quase 155 mil mortos.

 

“Segurando um lobo pelas orelhas”