Capítulo 10 - Ex nihilo nihil fit

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Em meados de abril, Karine, acompanhou tudo o que o grupo falava durante mais de um mês e fazendo suas pesquisas paralelas, invadiu os sistemas da Segurança Nacional da China e o sistema do laboratório da Universidade que o professor Win trabalhava. Os amigos chineses de Raquel haviam falado que homens estranhos haviam levado tudo, mas eles não contavam que o professor havia feito uma cópia em nuvem e que mesmo criptografada e com senhas, não foi tão difícil assim de Karine acessar. As anotações estavam em chinês, claro, mas ela passou os textos em um programa tradutor para poder entender pelo menos um pouco do que estava escrito e lendo os nomes sars, covid e as datas dos arquivos, ela já podia ter certeza que eles sabiam da doença bem antes dela se espalhar, ela só não tinha conhecimento técnico para saber se ele estava pesquisando sobre ela ou talvez a desenvolvendo. Mais do que nunca, ela tinha que mostrar aos outros o que ela tinha descoberto, mas não poderia ser pela internet, ela tinha que mostrar pessoalmente para alguém.

Em meio a pandemia, viajar de avião seria quase impossível, então decidiu pegar o carro e ir encontrar Mike e Thony em Minneapolis (eles haviam falado para o grupo algumas vezes e uma delas, para receber encomendas, tinham até passado o endereço completo) e ficando a apenas 6 horas de carro, era o único destino possível naquele momento.

Seus pais, já de volta de Israel, não queriam a deixar sair, mas ela tinha que levar aquela pesquisa para eles, como também, seria um alívio para ela ficar longe dos seus pais, ela não estava acostumada com tanta “presença” deles em casa.

Ela tinha uns remédios que às vezes tomava para dormir, pois já havia tido inúmeras crises de ansiedade ao longo da vida, mas naquela noite, eles não seriam usados por ela, na verdade, naquela noite ela queria estar bem acordada, mas para enganar o segurança, ela colocou três comprimidos  diluídos em uma xícara de café e levou para ele tomar.

O segurança estranhou um pouco o fato dela ter levado café para ele, ela nunca tinha levado antes, mas aceitou de bom grado, achando que ela estava sendo gentil por causa da pandemia e também porque a cozinheira que costumava levar para eles estava afastada.

Tomou, achando uma delícia e agradeceu com um largo sorriso.

Ela desejou boa noite a todos e foi para o quarto fingir dormir.

Esperou cerca de uma hora e quando a casa estava totalmente em silêncio,  foi até o escritório do segurança ver como ele estava... Já estava caído na cadeira completamente desacordado. Ela pediu desculpas para ele baixinho, carregou suas malas até o carro, abriu o portão da garagem de forma manual para não fazer barulho e saiu com o carro. Talvez eles ouvissem o barulho do motor do carro, mas até entenderem o que estava acontecendo ela já estaria longe. Para sorte dela, ninguém ouviu.  

Se achando a mocinha de seus filmes de aventura preferidos, pegou a estrada e pensando por todo o caminho como iria se apresentar para eles, se surpreendeu como a placa de Bem Vindo a Minneapolis havia chegado tão rápido.

Com o auxílio do GPS do carro, chegou até a casa que eles estavam e ainda sem coragem de bater na porta, ficou estacionada do outro lado da rua, por uns 15 minutos.

Como ela se apresentaria? Eles achariam que ela era louca? Uma hacker? Enfim, respirou fundo, criou coragem, colocou sua máscara, pegou seu notebook e saiu do carro.

Caminhou alguns poucos metros até a calçada do outro lado da rua, quando viu uma das crianças sair no jardim, ainda frio, cerca de dez graus, mas já começando a dar para ver o gramado se recuperando do longo inverno, chegando mais perto, sorrindo com aquela cena, foi despertada por Brenda que estava na porta da casa:

- Pois não. Eu posso lhe ajudar? Brenda perguntou.

Karine, meio sem jeito, respondeu.

- Meu nome é Karine, sou de Chicago e eu gostaria de conversar com Michael e Anthony, eles estão?

Brenda, achou muito estranho aquela moça dizer que veio de Chicago para falar com eles na casa dela e principalmente chamá-los pelos nomes completos. Mas como ela parecia conhecê-los, chamou por eles:

- Mike! Thony! Tem uma moça aqui fora querendo falar com vocês.

Eles saíram lá fora e não a reconhecendo, mas sempre muito cordiais, perguntaram no que poderiam ajudar.

E ela começou a falar:

- Meu nome é Karine e eu vim de Chicago só para encontrar vocês. Será que eu posso entrar? Para me explicar melhor? Está frio aqui fora.

Eles se entreolharam, mas vendo que ela estava sozinha, não viram muito problema e a deixaram entrar.

Ela pediu para usar o banheiro, precisava muito depois da longa viagem e logo se sentou na ponta do sofá que tinha sobrado.

Brenda, disse que ia fazer um chá para eles e saiu da sala, levando as crianças com ela para que eles pudessem conversar melhor.

E Karine respirando fundo começou a se explicar:

- Eu não sei muito como começar, então acho melhor eu ir direto ao assunto. Eu tenho conhecimento do grupo de vocês e gostaria de fazer parte dele.

Thony, sempre o mais falante, já a interrompendo, tentou disfarçar, mas com a voz trêmula, respondeu:

- Não sei de que grupo você está falando. Nós não somos daqui, somos de São Francisco e lá participamos de vários grupos, que pleiteiam sobre assuntos sociais, como racismo e qualquer outro tipo de preconceito. Mas agora com essa pandemia, todos estes grupos estão adormecidos por enquanto. Peço desculpas, mas acho que você perdeu a sua viagem.

- Não estou falando desses grupos. Estou falando do grupo que envolve investigações sobre o coronavírus, a morte suspeita do professor Win e o rapto da Raissa na Itália, o grupo formado por vocês, Raquel, Liz, Charlie, J.D. e a Raissa. Falou ela muito séria, mas olhando um pouco para baixo, evitando olhar nos olhos deles.

Eles não sabiam bem como reagir, não tinham ideia quem ela era de verdade, mas como ela saberia do grupo?

Mike, sério e firme, pediu mais explicações.

- Meus pais são donos da Órion, empresa de softwares. Acredito que devam conhecer. Disse ela firmemente.

- Claro que conhecemos. Acho que todo mundo que tem um computador ou celular tem algum produto da Órion. Thony respondeu bruscamente.

E ela continuou se explicando.

- E devido a isso, eu aprendi e me especializei em hackear sistemas, muitas vezes até por brincadeira, para testar a segurança dos programas. Um dia eu li um artigo escrito por Charlie Thompson e me apaixonei e em busca por saber mais sobre ele, acabei chegando ao grupo de vocês e acompanhei durante todo esse mês as conversas. Peço desculpas pela invasão de privacidade, mas acredito que eu possa ajudá-los. Esse meu conhecimento em hackear sistemas já me trouxe muitos problemas, mas talvez agora, eu consiga usá-lo para um bem maior e além do que, possuo recursos financeiros que talvez ajude nos deslocamentos e em outras coisas necessárias a uma boa investigação, além disso eu tenho uma coisa muito importante para mostrar pra vocês e colocando seu notebook no colo, o ligou.

Eles estavam confusos, aflitos e curiosos para saber o que tanto ela queria mostrar e quando ela abriu os arquivos e eles passaram os olhos pela pesquisa, como não entendiam nada, não acharam nada demais e Mike disse:

- O que tem essa pesquisa? Depois que começou essa pandemia, o que mais apareceu por aí é pesquisa.

- Mas vocês não entenderam. Essas pesquisas não são de um chinês qualquer e sim do Professor Win. Olha a data dos arquivos. São de poucos dias antes dele morrer.

Eles empalideceram. Tinham acabado de chegar na mesma conclusão que ela e juntos falaram:

- Eles já sabiam!

Thony e Mike se entreolharam por um minuto e Mike pediu para que ela ficasse ali por um tempo, que ele precisava conversar com Thony a sós. Neste mesmo momento entrou Brenda com o chá e aproveitando a deixa, se levantaram e pediram que a Brenda ficasse fazendo companhia um pouco à nova visitante.

As duas um pouco sem graça, mas Brenda tentando puxar papo, diz:

- E me conta, como é morar, em Chicago? Você tem filhos?  Tentando dar atenção a ela e as crianças ao mesmo tempo, quando chegou Bob, pulando e lambendo Karine, fazendo com que ela derramasse um pouco de chá na roupa e as duas rindo da situação, Karine só disse:

- Não se preocupe. Eu amo cachorros. E abraçou Bob, fazendo carinho. Se o grupo permitisse, parece que ali seria o nascimento de uma bela amizade.

Raissa, já escondida junto com seu pai a mais de um mês, não tinha mais só a preocupação com “aqueles” que estavam atrás dela, essa, agora era a menor. Ela tinha um vírus e um governo rígido para se preocupar. Com dificuldade de sair de casa para comprar alimentos e produtos essenciais, sendo seu pai, parte do grupo de risco e proibido de sair, eles já estavam passando por necessidade. Poucos amigos, que sabiam onde eles estavam, tentavam deixar algo para eles e na porta da casa velha e empoeirada depositavam algumas sacolinhas, mas era muito difícil e escasso, com tantos policiais e barreiras nas ruas controlando a ida e vinda das pessoas.

Na casa vizinha, havia uma senhora que há alguns dias tossia. As casas eram geminadas, então o som chegava facilmente no seu quintal. Ela, do outro lado, às vezes perguntava se ela precisava de alguma coisa e a senhora, que morava sozinha, sempre respondia que estava tudo bem e agradecia a preocupação.

Um dos dias, Raissa não ouviu a senhora tossir e naquele dia que passou a casa se manteve completamente silenciosa. Raissa, estranhando, começou a chamar pela senhora que não respondia e começando a ficar preocupada, disse ao seu pai que ia bater na porta da vizinha.

Raissa foi até a porta da vizinha e bateu insistentemente por alguns minutos e o único barulho que pode ouvir, foi o gato preto e branco miando na janela. Raissa, voltou a entrar na casa dela e indo até os fundos, pulou o muro que dividia as casas e pedindo licença foi entrando devagar na casa da senhora e infelizmente encontrou a cena que ela menos queria ver: A senhora estava caída no chão desacordada.

Ela parou uns metros antes e pensou por um instante no que podia fazer. Ela sabia que não deveria estar ali, que não era um problema dela, que podia se contaminar se a senhora estivesse com o vírus e se fosse atrás de ajuda, que “aqueles” que estavam atrás dela podiam encontrá-la e dessa vez seria pior, pois ela estava com o pai, que já não era mais tão jovem assim e ela tinha certeza que não teria um homem de terno novamente para ajudá-la, talvez já fosse até tarde demais.

O gato que havia miado para ela da janela, estava ali, se esfregando nos seus pés e miando parecendo que estava pedindo ajuda. Raissa, pegou ele no colo e disse para o gatinho:

- Você gosta muito dela né gatinho? Não se preocupe, eu não vou deixá-la aqui. Eu vou ajudar vocês. E com o gato no colo saiu da casa da senhora, pulando o muro de volta para a dela.

- Pai! Você pode dar um pouco de comida para o gatinho para mim? Eu acho que ele está com muita fome.

- E aonde você vai? Você não pode sair.

- Aquela senhora está desmaiada lá na sala, eu preciso chamar ajuda. Os nossos telefones não estão funcionando e mensagens via internet não vão ser rápidas como eu preciso. E colocando sua jaqueta preta, enfiou 100.000 libras libanesas (era todo o dinheiro que ela havia guardado para uma emergência) no bolso e saiu pela porta da frente às pressas.

Raquel que havia ficado muito doente naqueles meses, ficando a beira da morte na Unidade de Terapia intensiva de Wuhan, estava em seu apartamento sozinha, esperando o fim do lockdown que ocorreria nos próximos dias.

Desde que tinha ficado doente e tido alta médica, Raquel não havia voltado para o hospital. Preferiram afastá-la do trabalho até que ela se recuperasse totalmente.

Ela teria adorado estas pequenas “férias” para curtir um pouquinho ao ar livre, mas o lockdown imposto pelo governo chinês impedia que ela saísse de seu apartamento, o máximo que ela podia fazer e somente com autorização, era comprar mantimentos ou remédios.

Aproveitando para saber como todos do grupo estavam e como as coisas estavam em cada lugar, Mike e Thony surgiram falando de Karine e o que ela havia descoberto. Todos estavam conectados com exceção de Raissa e Charlie, sem muita discussão, chegaram à conclusão que ela poderia ser muito útil sim, já que os conhecimentos dela com informática se mostravam muito bons como ela dizia e todos por unanimidade resolveram dar uma chance a ela. O único que ficou receoso com a entrada de Karine no grupo foi J.D., pois ele sabia das coisas erradas que tinha feito no passado, mas achou que seria bom para ele também trocar ideias com alguém que entendia de sistemas de computador tanto ou mais que ele.

Mike e Thony combinaram com Karine em seguida a conversa com o grupo, que ela disponibilizaria para Raquel aquela pesquisa para que ela pudesse desvendar todos os detalhes do relatório, assim, talvez eles saberiam se o professor Win estava por trás dessa doença ou não. Karine, criou um programa não rastreável para que Raquel tivesse acesso, assim logo depois que ela baixasse o relatório, ele sumiria do sistema para que ninguém, ou algum espião, detectasse o que eles estavam fazendo, inclusive Karine melhorou também a segurança do acesso as conversas do grupo, ela imaginou que se ela tinha conseguido acessar, outra pessoa também conseguiria.

Já era tarde da noite quando Karine conseguiu fazer a transferência dos arquivos e a programação de segurança e Brenda a convidou para passar a noite na casa deles. Ela, muito sem graça, disse que não precisava e que procuraria um hotel naquela noite, mas Brenda a lembrou que por causa da quarentena imposta pelo estado, estava tudo fechado e ela não encontraria lugar algum para ficar. Sem opção, Brenda aceitou o convite e foi instalada numa cama improvisada feita com o sofá na mesma sala que estavam já que todos os quartos da casa estavam ocupados, mas apesar de ser muito diferente da grande cama a qual ela dormia, fazia muito tempo que não tinha uma noite tão tranquila.

As ruas vazias de São Paulo, demonstravam o medo de uma grande cidade em quarentena. As meninas da boate de J.D. estavam muito preocupadas pois nenhum cliente aparecia há semanas e mesmo que quisessem ver alguém, J.D. tinha proibido pois sabia da potencial letalidade da doença. Ele mesmo, por ser obeso, era grupo de risco.

- José, o que faremos se continuar assim? Grande parte de nós não tem economias. Quanto tempo será que vai durar isso? Disse Linda com tristeza no olhar.

- Eu não sei Linda, mas eu acredito que até acharem uma cura para essa doença, uma vacina ou talvez até quando todo mundo pegar... Não sei quanto tempo vai demorar para as pessoas se sentirem seguras novamente. Respondeu José olhando para ela com um olhar preocupado e acariciando os cabelos macios dela. E continuou:

- Mas não se preocupem, eu tenho economias e eu consigo manter esta casa durante um tempo, enquanto vocês estiverem aqui, estarão seguras, terão um teto, comida, remédios e o que mais for necessário. Eu só preciso que vocês neste momento que estamos vivendo se cuidem ao máximo e não saiam, precisamos evitar a contaminação. Vocês dividem os quartos, a mesma cozinha, os mesmos ambientes, então sabemos que se uma se contaminar, as outras podem pegar também e não sabemos quem pode ficar gravemente doente ou não, então, por favor, vamos respeitar as regras por aqui.

Linda e as meninas que estavam por perto se sentiram melhor por saberem que J.D. cuidaria delas, mas mesmo assim não estavam muito animadas com essas novas condições, mas não tendo muito escolha foram realizar seus afazeres, cuidavam da limpeza da boate, lavavam todas as roupas, cozinhavam e o que mais precisasse fazer.

Linda ficou por alguns minutos com a cabeça no colo de J.D. e apesar de estar delicioso o carinho, resolveu levantar e ajudar suas amigas.

 

“Nada vem do nada”