Capitulo 2 - Hoc non pereo habebo fortior me.

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Liz, achava que não tinha mais nada a perder, moradora da maior favela de São Paulo, desempregada, sem pais vivos e mais ninguém que pudesse contar, decidiu que a prostituição seria a sua saída, a saída daquela vida que ela não gostava, a saída daquele mundo infernal que ela vivia.

Cor preta, olhos castanhos encantadores bem maquiados, colocou sua melhor roupa, que não era muita coisa, mas deixava em evidência suas lindas curvas e foi para o lugar mais famoso da região nobre da cidade e estranhamente sem nenhum medo, chegando na porta, pediu para falar com o gerente.

O segurança sem olhar muito pra ela, a deixou falando sozinha e seguiu fazendo a escolha de sempre na fila para aqueles pretendiam entrar, mas ela não desistiu e voltou a falar com ele, mas desta vez, roçando sua perna na dele, o que fez com o calor do seu corpo arrepiasse cada pelo seu e percorrendo os seus olhos por cada pedacinho daquele espetáculo de mulher, analisando cada brilho do seu vestido, cada gota de suor que escorria do seu corpo, o estonteante batom vermelho da sua boca e se sentindo excitado de uma forma como nenhuma mulher o tinha deixado, com muito mais “argumentos “.

Se deixou mergulhar, na profundeza dos seus olhos e meio que hipnoticamente permitiu que ela entrasse e pediu pra chamar o gerente para atendê-la.

Liz, entrou naquele lugar, olhando para todos os lados, um pouco tonta com tantas luzes, barulhos, sons, gemidos, mulheres que dançavam em cima de palcos e em volta das mesas, homens sedentos por sexo, se esbaldando em luxuria...e de repente uma mão pousou em seu ombro...

Era um homem alto, pele branca judiada do tempo, gordo, barba longa, sorriso amarelo e roupas que mal se encaixavam naquele corpo estranho...Liz, se encheu de coragem e se insinuando pra ele, perguntou se ele era o Gerente.

-Sou eu mesmo, na verdade, sou dono desse lugar. Pela sua beleza e as roupas que veste, você quer trabalhar aqui, certo?

Liz, confiante da sua decisão, disse que sim e já perguntou como funcionava a casa e quanto iria ganhar... Aquele Grandão, que mais parecia o Papai Noel, diferente do que ela esperava, deu a resposta que ela nunca imaginaria naquela noite:

- Garota, é estranho, mas o seu olhar me diz que você não é garota de programa. Não enxergo medo em seus olhos. Aqui, todas, me procuram acuadas, fugindo de alguém, ou de uma vida que não queriam mais, não sei bem o que encontram aqui, algumas encontram dinheiro, um lugar pra viver e estranhamente até paz, mas você, acho que não achará o que procura aqui...

Liz, surpresa com a resposta dele, tentou argumentar, dizendo que entendia do negócio, que precisava do dinheiro e que queria mudar de vida, mas o Papai Noel terminou aquela conversa dizendo:

- Vá e ache o que está buscando em outro lugar. Se você se cansar e não encontrar, pode voltar e lhe dou um lugar nesta casa. Mas por agora, é o que eu tenho a dizer.  E olhando ao seu redor: Seguranças! Tirem ela daqui !!!

Assim que ela saiu, ele disse aos seus companheiros espantados por ele ter dispensado tão bela jovem:

-Ela não é daqui, pertence a outro Inferno.

E arrastada para fora, sem conseguir mais argumentar, gritando, que ele iria se arrepender, que seria a melhor entre todas as outras ali, se agachou na rua e chorou por um pequeno instante...

Mas orgulhosa como sempre, levantou dali firme e determinada, e saiu para caminhar pelas ruas e pensar em qual seria o próximo passo que iria dar, o próximo lugar que ela iria... Afinal, aquele não era o único puteiro da cidade... Levantando os olhos, avistou uma igrejinha, que apesar de ser madrugada, estava com a porta aberta.

Cansada de tanto andar, resolveu entrar e sentar um pouco pra descansar, encostada em um dos bancos ,ficou observando aquelas pequenas estátuas de anjos e se lembrou de quando era criança e sua mãe a levava na igreja e ela, relutante, ia e cantava aqueles hinos que pra ela não faziam o menor sentido... Ela não acreditava em nada, em céu, inferno ou que a sua mãe pudesse estar em algum lugar olhando por ela. A mãe dela estava enterrada porque um homem bêbado resolveu pegar o caminhão do trabalho e cruzou o caminho da mãe dela e ponto. Merecimento? Pecado? Ela só acreditava em sobrevivência.

E sentiu outra mão em seu ombro novamente. Ela se virou repentinamente e não viu ninguém ali. Um homem a olhava da porta da igreja. A situação era estranha. Não usava batinas ou “roupas” de igreja. Na verdade, ele estava extremamente alinhado, vestindo um terno preto elegante, muito bonito, com o cabelo penteado de lado, um perfume delicioso que dava pra sentir de onde ela estava sentada e malandramente sorria pra ela, dava para observar que tinha dentes e uma boca bem desenhada.

Ela se virou novamente para frente e olhou para o Altar, não havia absolutamente ninguém, nada se mexia, parecia que o ar tinha parado.

O homem continuava lá, na porta, olhando pra ela, quando a chuva começou...

Então, ele entrou na igreja e sentou bem ao lado dela, Liz conseguia sentir o seu calor e quando resolveu olhar pra ele, ele puxou assunto, falando da chuva e os dois se entreolharam e ela pode ver que os dele refletiam os seus, olhos vermelhos...pareciam estar pegando fogo...

Ela deu um pulo pra trás, se assustando pela primeira vez naquela noite, ela não era de assustar fácil e ele continuou falando da chuva, dos trovões, da força da natureza..., como se não desse importância para as expressões de medo que ela apresentava ao olhar pra ele... Até que:

- Porque você está me olhando assim?

-Os seus olhos... Estão vermelhos, parecem estar pegando fogo... Você está bem? Você está sentindo alguma coisa?

-Eu? Perfeitamente bem. Na verdade, há muito tempo que eu não me sentia tão bem. Faz muito tempo que eu a aguardava.

- Me aguardava? Eu não te conheço. E esses olhos?

-Te preocupa a cor dos meus olhos? Eles só refletem os seus. -   E a pegou pela mão, a levando até um espelho que havia na lateral da igreja e apontou seu rosto para que ela olhasse.

-O que é isso? O que está acontecendo comigo?  - Ela disse assustada, colocando as mãos no rosto . Não sentia nada diferente mas via que seus olhos estavam iguais aos daquele homem.

-É um truque? Já vi muitas coisas assim na televisão. Você só está querendo me assustar para tirar alguma coisa de mim.

Quando ela voltou a se olhar no espelho, percebeu que não havia mais o reflexo daquele homem e se virou pra trás o procurando. Tinha sumido. Tão inesperadamente, como quando tinha aparecido.

E seus olhos? Voltaram aos castanhos de sempre.

- Acho que estou delirando. Muito cansaço e preocupações. Deve ser isso. Vou pra casa.

E não percebeu que de cima das vigas da igreja, alguém a observava.

Chegando no seu barraco, acompanhada pelo sol que já estava nascendo, passa pela porta , cansada como se tivesse voltado de uma guerra, observada pelos vizinhos que já a consideravam uma mulher desprezível, pois nunca aceitou nenhuma das regras e imposições dali, mulher que já havia apanhado por não querer se entregar para um dos chefes do tráfico, por discutir com policiais que a queriam comprar. Ela não sabia e não entendia como estava viva ainda.

E se entregou pra velha cama que um dia foi da sua mãe. E com todos os acontecimentos daquela noite pairando sobre sua cabeça, a boate, a igreja, as mãos no ombro por duas vezes. A imagem do homem barbudo misturada com o homem lindo e misterioso, os olhos cor de fogo e enfim, caiu no sono.

Dorme Liz. Que logo você irá descobrir o motivo da sua força e da sua desgraça.

 

Graças a Deus

Quando Liz resolve abrir os olhos, percebe que alguém está na cozinha mexendo em suas coisas e como sempre está sendo perseguida, puxa o facão que deixa embaixo da sua cama e se aproxima bem lentamente, sem fazer barulho e dando um salto surpresa, agarra o pescoço apontando a faca na direção da garganta, quando ela dá um grito, ela  percebe que é  apenas a sua amiga Magnólia ou Maga, como ela chama.

- Maga que susto você me deu !!! O que está fazendo aqui? E mexendo nas minhas coisas...

-Eu te dei um susto? Você quase me matou com essa faca. E eu não estou mexendo nas suas coisas, só estou preparando um café pra você. Vi você chegando pela manhã com um aspecto muito cansado e achei que a noite tinha sido dura e como você nunca tem nada por aqui, resolvi trazer um café e fazer pra você quando acordasse...

- Obrigada minha amiga, salvou meu dia.

- O que você tem? O que aconteceu ontem a noite?

-Nada amiga. Eu saí pra resolver algumas coisas. Precisava achar um caminho pra sair daqui.

-Lá vem você, com essa história de sair daqui. Você não percebe que essa é a nossa vida, que a gente tem que se acostumar e pronto. Não temos perspectiva, sua mãe sempre tentou te ensinar que temos que obedecer, ficarmos quietas no nosso canto, conquistar o mínimo pra sobreviver e que isto basta. Tudo está nos planos de Deus.

-Deus? Que Deus é este o seu? Meu não é. Minha mãe acreditava em algo que não existe, pelo menos não pra nós. Aqui tem doença, tem tristeza, tem exploração, droga, se tem um pai tão bom, olhando por nós, porque ele permite que seus “filhos” passem por tudo isso? E nem vem com esta história de livre arbítrio, que a gente tem o que merece, porque eu nunca fiz nada, a não ser não aceitar ser escrava de nada e de ninguém.

- É. Você não tem jeito mesmo. Só toma cuidado pra não levar um tiro por aí. Você sabe que o pessoal por aqui não gosta muito de rebeldia.

-Não tenho medo de morrer.

-Todo mundo tem medo de morrer e você não pode ser diferente.

E ela era diferente. Ela não tinha medo de nada, não aceitava ser subjugada por ninguém, não aceitava servir a ninguém, ela queria ser reconhecida por quem ela era, pela sua bondade, inteligência e força e acreditava que ninguém tiraria isso dela, nem se tirasse sua vida.

Resolveram mudar de assunto, começaram a relembrar dos velhos tempos de criança, de todas as vezes que Liz aprontou com os meninos da viela, deram umas boas risadas até que o assunto as levou, a uma vez que Maga foi atacada pelo Madu, menino, hoje homem, mais poderoso do lugar.

Depois que aconteceu, elas nunca conversaram sobre isso, havia um acordo velado entre elas, mas o encontro com aquele homem misterioso na igreja, fez com que Liz puxasse o assunto.

-Maga, você se lembra daquele dia com Madu?

Maga olhou para baixo, tentando fugir do olhar de Liz e respondeu com um tom bem baixo de voz. – Claro. Como eu poderia esquecer?

- Ele estava te machucando junto com aqueles outros garotos e quando eu cheguei perto, eles tentaram me atacar, mas quando eles começaram a me bater, alguma coisa aconteceu. Eu olhei pra eles com todo o ódio que eu sentia. E eles saíram correndo.

- Ao contrário de mim, você não sentia medo. Acho que foi um milagre.

-Milagre? Lá vem você com estas coisas de Deus.

- Mas você não percebe? Você é diferente das outras pessoas. Porque eles saíram correndo? Eu só posso explicar que alguém ajudou você naquele momento e se não podíamos ver, só pode ter sido um anjo ou algo assim.

-Tá bom. Tenho certeza que há outra explicação. Mas se você prefere acreditar nesse negócio de Milagre e Anjos, deixamos assim. O que importa é que você nunca mais foi procurada por aqueles caras.

- Graças a Deus.

-Você de novo, dando crédito a Ele...não tem jeito.

E as duas riram juntas do episódio.

 

O Primeiro Círculo

Quando sua mãe morreu, Liz tinha 14 anos, hoje com 22, tinha feito de tudo na vida pra se virar e nunca deixar de estudar.

Trabalhava limpando casas de família, trabalhou vendendo doces nos faróis, depois foi trabalhar em bares e restaurantes, até que na faculdade de comunicação conseguiu um estágio em um canal de televisão muito famoso de notícias, começando no setor de almoxarifado, depois passando para o arquivo das notícias e finalmente passando a auxiliar na redação.

Mas ela começou a perceber que as coisas aconteciam e em vez das notícias serem informadas para as pessoas como elas simplesmente são, elas eram manipuladas conforme alguns interesses, haviam dados sendo ocultados ou alterados, formas diferentes de dar a mesma notícia, eles criavam uma atmosfera de medo quando queriam ou de paz quando era conveniente e isso trazia muito mal a todos que assistiam. Ela começou a perceber que eles tinham um poder maior do que se podia imaginar nas mãos e que estavam usando esse poder a seu bel prazer.

Não concordando com a situação, apesar de ser uma simples estagiária e precisar daquele trabalho, procurou o seu superior e mostrou provas de tudo que estava acontecendo e é claro que acabou despedida imediatamente. Ter alguém que pensasse tanto e que não aceitasse ser manipulado em uma equipe não podia dar certo.

A notícia daquela garota que “odiava a imprensa” se espalhou pelas principais emissoras e ela passou os próximos meses sem conseguir qualquer trabalho dentro da área, não tendo dinheiro pra continuar pagando a faculdade, prestes a se formar, teve que abandonar.

E isso a levou ao começo dessa história.

Ao longo daquele dia, depois que sua amiga foi embora, ela começou a pensar em tudo que tinha vivido até ali, as brincadeiras de criança, a vez que assustou os meninos, a tristeza da perda da mãe de uma maneira tão estúpida, os trabalhos que se propôs a fazer, as humilhações que não tolerou (por isso mudou tantas vezes de trabalho), a faculdade que fez com tanta dificuldade, o estágio que perdeu por não fazer o que não concordava, a ideia de se prostituir, ganhar dinheiro e sair daquela favela idiota e por último, aquele homem estranho na igreja, que ela nem sabe direito se ele existia de verdade.

Ela não gostava mais de assistir jornais na televisão, então buscava notícias em seu computador velhinho, comprado num brechó de informática e fuçava na internet (isso ela agradecia de morar na parte da favela que tinha wi fi grátis), sempre que dava.

Por causa da sua faculdade de comunicação, ela fez uma rede de amigos ao redor do mundo, na verdade, pessoas que ela nunca havia visto pessoalmente, mas que faziam ela se sentir um pouco menos sozinha.

Um dos seus contatos, na verdade, uma que sempre falava muito pouco na comunidade, naquele dia, apareceu falando que ela estava preocupada com o que estava acontecendo no hospital em que trabalhava.

Contou primeiramente da morte de seu professor de forma misteriosa. Depois contou do aumento de casos repentinos de problemas respiratórios no hospital. Parece que se tratava de um novo vírus de alto contágio e que já havia morrido algumas pessoas por causa dele, mas que ninguém ainda estava dando muita importância.

Ela enviou uma foto, que tirou escondida de dentro do hospital no seu último plantão, que havia acontecido há algumas horas, para mostrar a alta quantidade de pessoas chegando para serem internadas e a forma que estavam sendo isoladas. De primeiro momento a alta quantidade de pessoas, chamou a atenção de todos do grupo, mas para Liz, o que chamou mesmo a atenção, foi ver, lá no fundo da foto, encostado na parede, de forma displicente e observando todo aquele movimento, o homem que ela tinha encontrado na igreja.

Como poderia? Estar em São Paulo e na China em tão pouco espaço de tempo? Será que ela já tinha visto a imagem daquele homem em algum outro lugar e ter imaginado ele na igreja? Mas foi tão real. E os olhos vermelhos? A foto não tinha tanta nitidez, mas não parecia estar de olhos vermelhos.

 

O que não me mata, faz-me mais forte.