Capítulo 7 - Serva me servabo te.

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Sentada no chão, encostada no canto direito da sala, prisioneira de um crime que não havia cometido, Raissa se sentia injustiçada e acuada. Observando aquelas paredes sujas de terra, e sentindo uma mistura de cheiros de solidão e formol, virou para o lado e começou a vomitar.  Aquela sala quadrada, completamente fechada, tinha apenas como decoração, bem ao meio, uma mesa de escritório e duas cadeiras em péssimo estado e um pequeno espelho na parede. Não havia canetas ou lápis sobre a mesa, somente pedaços de papel coloridos e uma caneca de alumínio com um líquido transparente que parecia água, mas que ela, mesmo com sede, não se atrevia a beber.

A presença daquele espelho a intrigou e absorta em seus pensamentos com o olhar fixo para a porta, só conseguia pensar em como sairia dali.

Desde que partiu de Beirute, esteve morando em uma vila italiana bem pequena chamada Monteriggioni, a apenas alguns quilômetros acima de Siena, no coração da Toscana, a cidade é uma preciosidade medieval que foi construída no início do século XII e logo se transformou em um posto militar com o objetivo de defender as fronteiras do norte de Siena contra as invasões florentinas. Ela havia conhecido essa vila da primeira vez que foi para a Itália, em um Festival que ocorre todo ano no mês de julho, onde a cidade reproduz um pouco da magia da época.

O Vilarejo é tão pequeno que em cerca de 5 minutos pode-se caminhar a pé do portão da entrada ao de saída e pensando estar protegida por aquelas muralhas de pedras e suas 14 torres, ficou ali por mais de um ano e para manter as aparências e também se sustentar, auxiliava nas pequenas lojinhas, vendendo bugigangas para turistas. Nas suas horas de folga, através da internet, continuava convocando seus amigos e parceiros que ainda tinham ficado na região, como também tentando criar outros grupos em outros lugares do mundo, para continuar sua luta por igualdade.

Dante Aliguieri em seu livro Divina Comédia imortalizou o vilarejo, quando o usou como alegoria ao abismo mais profundo do mundo, em Inferno: “sobre o muro arredondado, Monteriggioni é coroada por torres, então na margem infernal que o fosso circunda, guerreavam os terríveis gigantes, apenas com a metade de seu corpo encouraçado”.   

Raissa pensou em Dante e que talvez ali, havia encontrado o seu inferno.

E quase como um gigante, interrompendo os seus pensamentos, um homem alto, forte e careca invade a sala. Com uma pasta na mão com alguns papéis e uma caneta, fez gestos para que Raissa levantasse do chão e se sentasse na cadeira.

- Você sabe o porquê está aqui? Falou aquele homem sério com sotaque árabe muito predominante em sua voz.

Se ajeitando na cadeira que sobrava, limpando a boca com o braço, respondeu a primeira coisa que lhe veio à cabeça:

- Eu acredito que seja porque não tenho documentos válidos para ficar na Itália, mas não imaginei que para estes assuntos eu seria arrastada para um lugar como este. Eu acredito que eu tenha direito de saber onde estou e de ligar para alguém. Disse Raissa olhando para o espelho, refletindo o pescoço daquele homem, mostrando uma tatuagem enigmática, representada por uns rabiscos que juntos pareciam formar um olho...

- Você não tem direito a nada. Na verdade, nós nem estamos tendo essa conversa. Mas eu vou ser bonzinho com você, se você resolver cooperar comigo. E seu sorriso entregava seu ar de deboche.

E ele começou a falar:

- Meu nome é Rafiq, pelo menos é assim que todos me chamam por aqui. Meu trabalho é conseguir informações para as mais diferentes pessoas. No seu caso, quem é meu chefe no momento, não lhe interessa. Não tenho como te dar a sua localização precisa, mas posso dizer que você ainda continua na Itália, no meio do deserto de Accona, a mais de 10 metros de profundidade, então, tentar gritar ou sair daqui é impossível, ao menos, que eu, queira. Aqui, nem depois de morta, seu pai vai conseguir encontrar seu corpo para lhe enterrar em um túmulo voltado para Meca. E emendou uma risada grosseira, rindo daquilo que achou se tratar de uma piada.

Raissa sabia que quando organizava as passeatas e as manifestações, incomodava muitas pessoas importantes e perigosas, mas nunca tinha feito nada de tão grave para estar envolvida numa situação como aquela e não estava sabendo muito como lidar e tentando se manter em silêncio, falava somente o estritamente necessário para não se complicar mais.

- Vou lhe fazer algumas perguntas e eu quero respostas exatas, disse Rafiq em tom firme:

- Seu nome completo e idade:

- Raissa Bint Ahmad Al-Harron e tenho 29 anos.

-De onde você é?

-Eu sou do Líbano, morava em Beirute com meu pai Ahmad.

-Qual sua profissão?

- Ajudava meu pai na loja de tapetes. Eu comecei a cursar medicina aqui na Itália, mas não terminei o curso. Aqui na Itália, trabalho como auxiliar em lojinhas que vendem souvenirs para turistas.

- Pois deveria ter terminado o curso e ficado por aqui da primeira vez. O que te motivou a voltar para o Líbano?

- A falta do meu pai. Minha mãe morreu quando ainda era criança e acabamos ficando muito ligados. Respondeu com a voz um pouco trêmula, pois apesar de sentir falta do seu pai, essa não era totalmente a verdade.

- Qual é a sua ligação com Mussain Al Abdala?

Com o misto de surpresa e dúvida, ela respondeu:

-Não tenho a mínima idéia de quem você está falando. Talvez você, possa me ajudar com essa pergunta.

- Estou vendo que você está começando a não me querer contar as coisas e eu achando que estávamos formando uma duradoura amizade.  E com raiva no olhar, se levantou da cadeira e rapidamente com as mãos envolta do pescoço dela, começou a apertar.

Raissa já estava começando a ficar sem ar e na tentava de arrancar a mão dele com as suas mãos e chutar o que sua perna encontrasse, conseguiu enfiar o dedo no olho do seu agressor, o que o deixou cego por alguns minutos.

Com o olho escorrendo sangue e com a raiva redobrada, Rafiq esqueceu por alguns segundos que precisava de informações e com vontade de matá-la, partiu para cima dela. Raissa vendo que aquele momento era o seu fim, só colocou as mãos na frente do rosto e para sua surpresa, o bip que estava na cintura de Rafiq tocou.

O som abafado do bip fez com que Rafiq parasse imediatamente o que estava fazendo, parecia que havia acordado de um transe de terror. Parou para ler a mensagem e sem dizer nada, saiu da sala, batendo a porta e trancando imediatamente.

Raissa, recuperando o ar aos poucos, se perguntava quem era esse Mussain Al Abdala e não se conformava que iria morrer ali, por causa dele, sozinha, longe de seus amigos, pai e da sua terra. O desespero começou a tomar lhe conta e a fez começar a vasculhar o lugar com mais detalhes, tentando encontrar uma saída daquilo tudo.

Ela se lembrou que Rafiq havia dito, que eles estavam vários metros embaixo da terra, então se fosse verdade e eles ainda estavam respirando, alguma entrada de ar vinda lá de fora teria que existir e foi aí que ela percebeu que logo acima da mesa, no teto, existia um quadrado que parecia ser uma entrada de ar.

E subiu na mesa e tentou alcançar a tampa que fechava aquele espaço. Com muito esforço, ela conseguiu abrir a tampa e se enfiar de algum jeito naquela tubulação. Era estreita e escura e tinha muita sujeira, mas seria o seu caminho para o Paraíso, caso ele conseguisse tirá-la de lá.

Cuidadosamente, fechou a tampa da sala e começou a se arrastar, tentando fazer o mínimo de barulho possível, conseguiu pelo menos passar pela extensão daquela sala e chegando em uma bifurcação avistou outra saída de ar. Ao olhar o que havia abaixo, só conseguia ver um enorme corredor.   

Ela não sabia se descia ali e iria correndo, o que seria muito mais rápido para alcançar a sua fuga, mas não sabendo aonde ir, tinha medo de encontrar com alguém no caminho. Não sabia se continuava a ir pela tubulação, mas sabia que logo seria encontrada, ela tinha provado que aquele homem não brincava em serviço.

Decidiu se arrastar por mais alguns metros para ver se conseguia chegar em algum lugar que pudesse se manter escondida por um tempo ou até pedir ajuda, quem sabe, encontraria uma sala ou um telefone. O tempo foi passando e já com dificuldade de respirar em meio àquela sujeira e aperto, o que a fazia lembrar o tempo todo daquelas mãos enormes em volta do pescoço, avistou mais uma saída de ar.

Pelas barras daquele pequeno quadrado, ela podia ver dois homens conversando, um, era o Rafiq, com um remendo qualquer no olho que ela o tinha ferido, e o outro, um homem muito bonito, vestindo um terno preto elegante com o cabelo penteado de lado. Ela não conseguia ouvir muito bem o que eles diziam, era uma linguagem estranha, parecia árabe, misturado com italiano, com um pouco de inglês,  deveria ser algum dialeto que ela não conhecia ou alguma linguagem em códigos, sei lá, pela postura e a forma que falava com Rafiq, provavelmente ele deveria ser o chefe, mas totalmente diferente do que ela havia imaginado. Ao contrário de um homem de turbante, de barba e baixinho, aquele homem era totalmente ocidentalizado.

O que mais lhe chamou a atenção é que aquele homem não parecia estar feliz ou preocupado com Rafiq, ao contrário, parecia estar brigando com ele e mesmo Rafiq sendo muito maior e mais forte, o homem de terno não parecia temê-lo e sim Rafiq a ele.

E após um grito muito alto dado pelo homem de terno, aquele careca raivoso, saiu da sala, batendo a porta.

Logo após a saída, o homem de terno olhou imediatamente para cima, para o lugar que Raissa estava e estendeu a mão e dizendo agora em italiano:

- Puoi andartene, ti aiuto io. (Pode sair, eu vou te ajudar)

Raissa assustada e não entendendo nada, mas não aguentando mais ficar presa naquela tubulação e sem muitas opções, quis acreditar naquele homem que tinha um olhar muito marcante e com a ajuda dele, saiu da tubulação.

Eles tinham poucos minutos para sair dali até Rafiq voltar e soar o alarme. Logo descobriria que a prisioneira havia fugido.

- Não importa o que aconteça. Fuja. Corra. O mais rápido que puder. Disse o homem de terno preto olhando bem no fundo dos olhos dela.

Não dando qualquer chance para que ela falasse alguma coisa, a puxou e a levou até uma outra porta que ficava na parte de trás da sala, a qual abria para outro corredor bem largo e começaram a correr. No fim do corredor, atrás da próxima porta, havia dois seguranças, que quando o alarme foi soado, se entreolharam. Imediatamente, o homem de terno que a ajudava, empurrou a porta e a escondeu e dizendo em árabe buscando uma distração:

- Rafiq está chamando vocês, a prisioneira sumiu!! E imediatamente os dois saíram da frente da porta e correram em direção ao fundo do corredor.

Aproveitando a situação, os dois passaram pela porta, a que os levou um pouco mais a frente a se deparar com uma longa escada, escada esta, que acompanhava um longo tubo arredondado.

- Vamos! Rápido! Temos que subir esta escada até o fim. Lá em cima estará a nossa saída. Falou ele, a ajudando a subir os primeiros degraus.

E foram subindo o mais rápido que conseguiram, mas no meio do caminho, já podiam ouvir os gritos e os passos dos homens de Rafiq chegando mais perto, quando estavam prestes a abrir o que parecia ser uma espécie de escotilha, ouviu-se tiros, Raissa, sentiu a vibração do ricochetear de balas no metal e tudo muito rápido, por entre o pequeno espaço que conseguiu abrir, pulou para fora e com a luz do sol forte nos olhos e um pouco confusa, só deu tempo de dar uma olhada para trás e perceber que seu salvador não estava mais ali.

Será que os tiros haviam acertado nele? Será que ele havia caído? O que ela faria? Ela tinha que voltar e ajudá-lo, mas lembrando das palavras dele, começou a correr, correr sem rumo no meio do deserto e depois de horas caminhando, avistou uma cidade ao longe e quase chegando lá, em meio à exaustão, desmaiou.

E nem tudo é ódio. Ainda há amor.

Os gêmeos saíram correndo da porta da casa, quando avistaram aquela Kombi toda estilosa parando em frente ao Jardim. Eles ainda não tinham se visto pessoalmente, mas já sabiam de muitas histórias.

Os bracinhos daquelas crianças, hoje, com 4 anos, se enlaçaram cada uma com um tio e rindo e se divertindo, os dois já poderiam imaginar como seriam aquelas férias. Mesmo com aquela temperatura congelante, de quase 10 graus negativos, eles podiam sentir o calor do amor e da alegria daquelas crianças. A irmã de Mike com um pano de prato nas mãos, só observava, encostada no batente da porta principal da casa, aquela cena gostosa, onde Mike rolava com sua filha no gramado coberto pela neve, fazendo cócegas até perderem o ar.

A casa era daquelas típicas americanas, degraus e varanda na frente da casa, telhado colonial para deixar a neve do inverno escorrer, muita madeira e janelas de vidro. Já dentro da casa, trazendo um ar aconchegante e muito familiar, havia um corredor repleto de retratos, vasos de plantas e uma enorme poltrona, daquelas que quando vemos, pensamos em vovó. Sendo recebidos por mais um membro da família, o Bob, enorme Labradoodle de cor marrom, que pulando e fazendo festa, derrubou Thony no chão, causando alguns hematomas e mais risadas.

Apesar de já ser noite, o marido de Brenda ainda não havia chegado do trabalho, então todos foram se sentar na sala principal da casa, comendo alguns petiscos que Brenda havia preparado e se aquecendo perto da lareira.

Mike observou que em cima de um aparador havia fotos dele e da irmã juntos de quando ainda eram crianças, tinha até uma foto com Thony, onde ele a levantava nos ombros, para comemorar um campeonato de soccer (futebol) que o time de Brenda havia vencido. Aquele ano tinha sido difícil, pois Brenda havia sofrido uma lesão complicada no tornozelo logo nos primeiros jogos, mas com muito esforço e fisioterapia, conseguiu participar dos últimos jogos do campeonato e fazer o gol da vitória. Ela contou que foi nessa época que surgiu a vontade de se tornar fisioterapeuta.

E relembrando histórias do passado e contando histórias atuais, passaram-se horas, até os gêmeos caírem de sono no sofá e Bob se deitar ao lado deles com as patas para o ar.

Mike e Thony  ajudaram Brenda a colocá-los na cama e logo que ela fechou a porta e estava os levando para o quarto onde iriam ficar, todos ouvem a porta da entrada bater e Richard, marido de Brenda entrar.

Brenda desceu as escadas rapidamente, mas nas pontas dos pés para não acordar as crianças e encontrando o marido com ar irritado e cansado já sabia que devia ter sido um longo dia. O ajudando a tirar o casaco de neve, Brenda já esperava a pergunta que estava por vir:

- De quem é essa Kombi velha parada em frente de casa? Disse ele com ar desconfiado e ranzinza.

- É de meu irmão e meu cunhado. Eles chegaram faz algumas horas.

- E onde estão? Franzindo a testa e prendendo os lábios.

- Estão lá em cima, arrumando as coisas para dormir. Já é tarde. É melhor falar com eles pela manhã. Disse ela um pouco receosa.

- Mas eu quero vê-los agora. E murmurou algo baixinho quase que inaudível.

E subindo as escadas pisando duro, foi até o quarto onde eles iriam ficar e vendo os dois desarrumando as malas disse com a voz bem grossa:

- Mas são dois veados mesmo!

E ainda de costas, Mike só diz:

- Melhor do que ser uma bicha enrustida como você.

O silêncio pairou no ar. Thony e Mike se olharam.

Quando Mike resolveu se virar, Richard puxou sua mão e lhe dando um abraço bem apertado e rindo disse:

- Que saudade meu amigo! Como é bom ter vocês aqui.

- Saudade de você também, disse Mike, que já conhecia bem o jeito engraçado de seu cunhado.

E aquele cansaço de outrora havia passado e por um momento, Richard, poderia esquecer o seu dia de policial para receber seus queridos parentes em casa.

 

Se você me salvar, eu vou salvá-lo