Capítulo 15 - Nemo me impune lacessit

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Depois do que aconteceu em Beirute, Charlie não apareceu mais no grupo de amigos e também se recusara a trabalhar em “campo”, pelo menos por um tempo. Desde a época da guerra, ele sempre lutou por uma “causa”, acreditava em um bem maior e não acreditava ser correto matar pessoas inocentes, principalmente quando descobriu que todo aquele plano era para matar Raissa, o que também acabaria com a Liz, uma pessoa batalhadora que ele considerava muito como amiga.

Durante os meses que se passaram, ficou fazendo serviços internos e uma das suas responsabilidades era registrar os fatos acontecidos nas fichas de cada ser humano. Existia um departamento enorme cuidando disso. Por curiosidade, um dia, entrou no setor de arquivos, que estava vazio e começou a verificar as fichas de todos que haviam passado por sua vida, ou vidas, percebendo o quanto muitas delas tinham sido “postas” na sua vida com o propósito de recrutá-lo. De primeiro momento, sentiu que talvez fosse importante, depois passou a se sentir como uma marionete e o sentimento de revolta começou a surgir em seu estômago.

Em meio as suas “investigações” teve conhecimento sobre “Thomaz”. Na verdade, seu nome completo era Thomaz Poffer e já era muito conhecido da instituição. Por milhares de anos ele era considerado um “inimigo” da “força”, pois trabalhava para tentar evitar que a humanidade se autodestruísse. A sua ficha era muito extensa, retratando sua presença desde o surgimento da humanidade, havia fotos dele junto a reis no antigo Egito, em meio ao povo, no julgamento de Jesus, ajudando as pessoas a se salvarem do incêndio em Roma (acho que ele saberia se foi Nero que iniciou o incêndio ), em cima da grande Muralha da China com roupas de artilheiro,  e viu fotos de Tom carregando corpos em meio a uma peste que atingiu o império chinês e o mediterrâneo em 165 D.C.

Naquele momento, ele só pensava que Thomaz só estava onde tivesse desgraça humana:  a Peste Negra, que teve seu pico entre 1347 e 1351 também estava presente nos arquivos, a morte de 75 a 200 milhões de pessoas na época com certeza não poderiam passar em branco, tendo fotos aos montes, dele entre os cientistas e os doentes.

Eram tantas páginas, tantos dados históricos que Charlie mal podia acreditar no que seus olhos estavam vendo.

Thomaz, estava presente quando a primeira pedra da construção da Basílica de São Pedro foi colocada pelo papa Júlio II em 1506, ele acompanhou a publicação das 95 Teses de Martinho Lutero em 1517, esteve em meio ao processo de colonização do Brasil, em meados do século XVI e XVII, as vezes visto em meio aos tupiniquins que apoiavam os portugueses,  e as vezes em meio aos tupinambás que apoiavam os franceses.

Ele conseguiu ver que Thomaz estava em meio a Guerra da Secessão nos EUA e que estava presente quando Lincon assinou a proclamação de Emancipação dos escravos em 1862 e  apoiando a 13ª emenda à constituição em 1865, acabando com um dos maiores sistemas de produção escravagista da história.

Thomaz também esteve no Brasil à época, apoiando abolicionistas e ficando amigo de João Alfredo, político responsável pela criação da Lei Áurea, influenciando a aprovação no Senado o que levou a assinatura em 13 de maio de 1888 pela princesa Isabel.

Àvido por saber mais sobre esse ser que não poderia ser humano, virou as próximas páginas e viu que Thomaz também esteve na primeira guerra mundial e...

E uma foto lhe chamou muita a atenção, Charlie reconheceu o acampamento da guerra que  esteve quando doente, reparando melhor, conseguiu ver a enfermeira que esteve a cuidar dele. Agradeceu mentalmente todo aquele cuidado, pensando se ela teria escapado da guerra... Passando os dedos com carinho, percebeu que havia outra foto atrás, um pouco grudada na primeira, meio amarelada, onde poderia ver o “chefe” e o “Thomaz” conversando com a enfermeira. Pelo semblante, eles pareciam se conhecer e não pareciam ser “inimigos”.

Em meio a seus pensamentos, ouviu o ranger da porta do corredor e rapidamente, colocou os arquivos de volta no lugar, guardando aquela foto no bolso. Talvez fosse útil mais para a frente.

 

J.D. e Karine estavam trabalhando juntos em busca de informações quanto aquela ligação e saída misteriosa de seu pai de uns dias atrás e rastreando, conseguiram saber que a ligação era proveniente de São Paulo, no Brasil.

Karine, grampeou o telefone do escritório do pai a partir daquele dia e começou a escutar todas as próximas conversas desde então. Ela não tinha ouvido nada demais, só assuntos de negócios, até aquele dia. Diferente do que ela imaginava, em inglês com um sotaque diferente, uma voz feminina muito sensual e ao mesmo tempo firme, começou a perguntar se já estava tudo certo para a festa. Seu pai, pigarreou um pouco e respondeu em seguida que só faltava enviar alguns convites, mas que até o dia, todos estariam convidados.

Aquela conversa estranha, soou como códigos ao ouvido de Karine. Ainda em meio a pandemia, com certeza não iria haver festa e seu pai, ocupado como era, jamais seria responsável pela organização.

- Não se esqueça que se faltarem convidados e a festa não for um sucesso, teremos que chamar sua filha para participar. Disse aquela voz com um tom sério.

- Não coloque minha filha nisso, vai dar tudo certo. Já está tudo organizado. Respondeu o pai com um tom de nervosismo e raiva na voz.

- Na metade de novembro voltamos a nos falar. E a voz feminina desligou imediatamente sem esperar qualquer resposta do pai.

O pai, imediatamente pegou o telefone e ligou para um homem que parecia estar em uma sala como aquelas que abrigam o pessoal de telemarketing, pois não se parava de ouvir pessoas falando e digitando, lembrava um pouco alguns setores da empresa de seu pai, mas com a diferença que o idioma falado não era inglês, parecia árabe, mas não tendo certeza e não entendo nada, gravou a ligação para realizar a tradução depois.

Foi uma ligação rápida, de cerca de uns dois minutos, mas parecia ser muito importante, pois seu pai elevou a voz e com rispidez desligou o telefone.

Rapidamente, Karine passou para J.D. e com seu auxílio, traduziram juntos o que também parecia ser uma espécie de código:

- Nossa, não sabia que o maior empresário da computação gostava de festa, falou J.D. em um tom de brincadeira.

- Não brinque com coisa séria, é claro que ele não gosta, na verdade, ele até fazia festas antes, daquelas chatas, para clientes, mas agora na pandemia, fala sério, né? Falou Karine um pouco preocupada.

- Tô brincando, já deu pra perceber que não é festa, que seu pai está sendo chantageado e é por alguma coisa que vai acontecer agora em novembro. Respondeu J.D. em tom sério.

- Você tinha ouvido algo sobre as eleições, certo? As eleições são agora em novembro. Dos Estados unidos e também do Brasil. Deve ter alguma coisa a ver. Talvez algum candidato queira que seu pai manipule as eleições por aí.

- Meu pai não faria isso, como eu lhe disse, ele não apoia candidato algum. Nunca, nem para gente ele fala quem ele gostaria de votar. E também o sistema das eleições aqui nos EUA é complicado de violar, pois é em papel, teria que sumir com os votos, ou talvez fazer com que as pessoas contassem errado e são muitas pessoas, câmeras filmando, auditores, não dá para manipular assim. Não teria como esconder uma fraude destas.

- No Brasil, que eu saiba é eletrônico não é? Perguntou Karine querendo insinuar alguma coisa.

- Sim, mas é cheio de segurança, seria praticamente impossível violar, acho que nem se seu pai juntasse todos os melhores programadores, ele conseguiria invadir. E também quem teria interesse em uma eleição para prefeitos e vereadores, ainda se fosse de Presidente, ainda poderia ter algum sentido. E aqui a maioria das pesquisas, bateram com os eleitos, então, não acredito terem sido fraudadas.

- É, não vejo muito sentido, mas por que uma ligação de São Paulo, agora, uma da Califórnia e agora essa ligação em árabe que está irrastreável? Perguntou Karine, na verdade, mas para si mesma do que para J.D.

- Eu lembro que meus pais no começo da Pandemia estavam em Israel, talvez tenha algo a ver, mas Israel é super tecnológico, não sei se precisariam da ajuda do meu pai para alguma coisa, na verdade, meu pai foi para lá para conhecer novas tecnologias e não fornecer. Comentou Karine com J.D.

- Mas é suspeito. Falou J.D.

- Sim. Karine respondeu pensativa e continuou:

- Precisamos descobrir qual país fala esse dialeto de árabe, talvez nos dê uma luz. Apesar que isso pode ser uma pista falsa, porque a pessoa para qual meu pai ligou falar árabe, não torna  necessariamente o país a qual ela pertença culpado de qualquer coisa.

- Mas temos que começar de algum lugar. Disse J.D. e continuou:

- Que tal começarmos pedindo uma ajudinha para Raissa? Ela fala árabe, ela é libanesa.

- Mas nós não tínhamos concordado em não falar para ninguém, por causa do que aconteceu com os relatórios do professor da Raquel?

- Tínhamos, mas as vezes a necessidade faz a gente mudar os planos. Não vamos falar no grupo, vamos falar somente para ela.

- Tá bom, chama ela aí e explica tudo.

Passados quase 3 meses da morte de seu pai, Raissa ainda sonha todos os dias com aquela explosão e acorda ao meio da noite abruptamente suando frio e chamando o nome dele.

Joshua que já estava se acostumando com essa situação, mesmo assim, correu do outro quarto, pois prometeu não dormir com ela até o dia que eles se casassem (se ela aceitasse, claro, pois ele ainda não havia feito este pedido, achava muito cedo diante de tudo que havia acontecido) e  entrando no quarto, senta na beirada da cama e a abraça tentando acalmá-la. Ela, que está diferente, pois tem dificuldade para comer, o enlaça com seus braços magrinhos e olha em direção a parede, olhando o quadro de seu pai, pintado por uma amiga da família.

- Eu estou aqui minha querida. Dizia Joshua enxugando as suas lágrimas e continuou:- E estarei aqui pelo tempo que precisar, mas acho que você talvez precise de ajuda médica, tenho certeza que seu pai não iria querer você sofrendo desse jeito. Ele tinha orgulho daquela menina poderosa e corajosa, lutadora de ideias nobres.

- Ele tinha orgulho de mim, mas não sei se estava certo em me apoiar, talvez se eu tivesse seguido a profissão de médica na Itália, talvez se eu não tivesse me metido em tantas encrencas como o seu pai fala, talvez meu pai ainda estivesse aqui. Respondeu ela cabisbaixa.

- Mas aquela explosão não teve nada a ver com você. De acordo com as autoridades aquilo foi um armazenamento de forma irregular de quase 3 toneladas de nitrato de amônia que tinha sido apreendido a algum tempo. Disse Joshua puxando o seu queixo com as pontas dos dedos.

- Mas porque será que estava lá e porque bem naquele dia o container foi aberto? Coincidência? Coisa dos céus? Ou uma punição? E olhou primeiro para cima apontando o céu e depois para o chão, simbolizando o inferno.

- Você tem que parar com essa mania de perseguição, você acha mesmo que existe um grande plano para destruir você e sua família? Você acha que matariam tantas pessoas e deixariam tantas machucadas e tanta destruição só para atacar você? Você é a pessoa mais importante do mundo para mim, mas acho que se quisessem te matar, fariam de uma maneira mais simples. Falou Joshua com um leve sorriso no rosto.

- Eu já te contei que era para eu ter morrido aquele dia, não contei? E pegando na mão de Joshua deu um beijo em seu dorso.

- Sim, mas porque parte do prédio que você estava embaixo desabou devido a explosão, não porque alguém tentou dar um tiro em você. E Joshua Continuou:

- E Falando naquele dia, eu fiquei imensamente feliz quando soube que você estava bem, mas até hoje você não me explicou como conseguiu sair dali tão rápido e sem nenhum arranhão.

- Como eu lhe disse, acho que o choque de ter perdido meu pai foi tão grande, que acabei apagando algumas memórias. Eu não tenho ideia como eu fui parar em frente a seu prédio aquele dia, eu só lembro de sentir a parte de cima do prédio desabar e depois eu estar em frente à sua casa.

Mas Raissa sabia exatamente quem a tinha salvo e quem estava com ela, apesar de não se sentir bem em mentir para ele, seria melhor ele não saber, pelo menos por enquanto.

- Um dia você vai lembrar e se não lembrar também não tem problema, o importante é você estar bem, nesses meses você ajudou como pode as vítimas da bomba, serviu comida, criou uma corrente de ajuda com roupas e alimentos, mesmo com o vírus ainda entre nós, vocês auxiliou no hospital, tentando achar as famílias dos enfermos, você não acha que já está na hora de descansar um pouco? Perguntou Joshua segurando agora as duas mãos de Raissa.

- Eu não posso parar, se eu parar, os meus pesadelos da noite, também aparecem durante o dia, pelo menos se eu estou ocupada ajudando os outros, a minha cabeça não fica pensando em meu pai e sei lá, é como se eu devesse isso a ele.

Dentro dela, ela tinha que suportar a dor de não poder fazer nada contra aqueles que fizeram tudo aquilo acontecer, ela queria justiça, mas ainda não sabia a quem responsabilizar e também não tinha poder para isso, mas ela acreditava que a hora certa chegaria.

- Está bem, mas amanhã cedo, quando acordarmos quero te levar em um lugar. Disse Joshua soltando as mãos dela e levantando da cama se dirigiu para porta do quarto.

- Qual lugar? Perguntou Raissa curiosa.

- Surpresa. Disse Joshua já fechando a porta.

- Adoro surpresas... quando são boas... Respondeu ela baixinho.

E quando Joshua já estava no corredor, Raissa, chama:

- Joshua.

- Fala meu amor. Respondeu Joshua do corredor, sem abrir a porta.

- Obrigada.

- Imagina. Não tem do que agradecer. E sem que ela percebesse, sentou-se no chão, encostado na porta dela.

- Eu ainda não tinha lhe falado, mas a última conversa que eu tive com o meu pai foi sobre você.

- E o que ele disse? Respondeu ele em um tom baixinho.

- Que você é um bom rapaz. E ele tinha razão.

 

 “ Ninguém me fere impunemente”