Capítulo 11 – Memento vivere

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Raissa bateu a porta velha com força e olhando para os dois lados da rua, resolveu pegar o caminho da esquerda. Era um pouco mais longe do centro, mas ela acreditava que talvez tivessem menos guardas no caminho.

Com todas as suas lutas, Raissa tinha feito muitos inimigos, mas como tem que ser, verdadeiras amizades também surgiram e era atrás de uma delas que Raissa estava indo.

Ela tinha um amigo muito querido, Joshua, que era filho de um comerciante importante em Beirute e sabendo que ele era bem influente, acreditou que ele seria a pessoa certa para ajudar.

O único problema é que eles moravam em um apartamento na região de Achrafieh, região nobre e central da cidade e com certeza fortemente protegida, mas isso não seria um obstáculo para ela.

Ela conhecia uns caminhos diferentes para chegar até lá, fugindo das ruas principais e caminhando por algumas ruas mais estreitas, Raissa tentou ir o mais rápido que pode até chegar à esquina anterior ao prédio onde queria ir, avistando muitos militares da guarda do governo.

Ela parou alguns instantes para pensar como ela passaria por ali, quando avistou o Sr. Ali, chegando em seu carro de luxo. Ele nunca a apoiou publicamente, ele dizia que isso faria mal para os negócios dele, mas sempre a tratou muito bem quando ela estava em companhia do seu filho e tinha muito respeito pelo seu pai, pensando nisso, arriscando-se, partiu em disparada em direção ao carro e bateu no vidro no momento em que o carro diminuiu a velocidade para entrar na garagem do prédio.

Quando ele a viu, pediu imediatamente que o motorista destrancasse a porta e a puxando para dentro do carro e batendo a porta atrás dela, pediu para o motorista seguir o mais rápido que podia para dentro da garagem, antes que uns dos guardas percebessem a presença dela ali.

- O que você faz aqui Raissa? Você não viu como tem guardas nas ruas? Se eles te pegam... E seu pai? Onde ele está? E seguiu fazendo perguntas, ligeiramente nervoso, não sabendo muito bem o que fazer com ela.

- Me perdoe Sr. Ali. Mas eu preciso muito de ajuda e vocês foram os primeiros que eu pude pensar em meio a esse caos que estamos vivendo. Disse ela, com um aperto no peito.

- O que você aprontou dessa vez Raissa? Eu já não te pedi para ficar longe de confusão? Que tem coisas que não precisam ser mudadas. Eu respeito muito você e seu pai, mas...

- Não Sr. Ali. Dessa vez eu não me meti em confusão nenhuma, não por enquanto... E abaixou a cabeça.

- Nós estamos morando perto da região portuária há umas dez quadras daqui e temos como vizinha uma senhora que mora sozinha, todos os dias eu a ouço e falo com ela através do muro para saber se ela está bem, mas hoje, não conseguindo falar com ela o dia todo, tentei bater na porta dela e ela não me atendendo, pulei o muro dos fundos e a encontrei caída no chão. Não cheguei muito perto dela para saber se ainda estava viva, por causa do perigo de contaminação com o vírus, tenho medo de pegar algo e passar para o meu pai, mas não podia deixa-la lá assim, sem qualquer ajuda e como não temos telefone e o sinal da internet está péssimo e seria demorado o retorno, resolvi procurar alguém que tivesse alguma influência e mandasse algum médico, ou socorrista no local.

- Raissa, meu bem, bonita a sua atitude, mas não podemos salvar todo mundo, a vida é assim, uns vivem, outros morrem, esse é o ciclo da vida. Disse ele olhando bem no fundo dos olhos dela.

- Por favor Sr. Ali. Peça para ir alguém ver aquela senhora. Ela não merece morrer sozinha daquele jeito. Pode ser, até que sua alma já não esteja mais entre nós, mas ela merece pelo menos ser enterrada dignamente. E pensou na mãe dela, que devido ter sido brutalmente queimada, não tinha tido esta oportunidade.

Sr. Ali, percebendo o porquê de tanta preocupação com aquela senhora disse que iria dar um jeito, mas que nem ela e nem seu pai, deveriam ser vistos lá e deveriam ficar dentro da casa o tempo todo. Ele iria inventar alguma coisa para justificar como ficou sabendo daquela senhora e emendou:

- E vocês estão precisando de alguma coisa? Você não deve estar conseguindo sair para comprar nada no mercado. E dinheiro? Vocês tem?

Raissa sempre muito orgulhosa, não gostava de aceitar nada de ninguém ao menos que fosse realmente necessário e era realmente necessário, mas o Sr. Ali já estava a ajudando muito, não podia aceitar mais.

- Muito obrigada Sr. Ali, mas não é necessário, temos tudo o que precisamos, principalmente amigos como vocês. Vou te passar o endereço. E com um papel e uma caneta dadas pelo Sr. Ali, anotou o endereço dela e da senhora.

- Vou pedir que pelo menos meu motorista te leve até a sua casa, não é legal ficar perambulando por aí. Disse o Sr. Ali com tom de imposição.

- Eu aceito até próximo Sr., esse carro entrando na minha rua será bem estranho. Disse ela, dando um sorrisinho de canto de boca.

- Está bem. Combinado. Respondeu o pai de Joshua, retribuindo o sorriso.

- E deixe um abraço para Joshua. Diga a ele que sinto falta dele. Disse ela de dentro do carro, para o Sr. Ali, que já estava fora, na garagem, se despedindo.

- Tenho certeza que ele sente sua falta também. E descendo do carro, deu um adeus para ela e pedindo para ela fechar o vidro, o carro saiu da garagem indo em direção ao Porto.

- Que menina de bom coração.  Se não fosse tão agitadora, seria até uma boa mulher para o meu filho. Falou baixinho e caminhando em direção ao elevador.

Chegando no seu apartamento, ele já pegou o telefone e ligou para o superintendente da polícia local que ele conhecia e viu que chegou a hora de cobrar “aquele” favor e dando o endereço da senhora, pediu para que fosse no local socorrê-la.

Joshua, reconhecendo o endereço que o pai havia falado, pois sempre quando dava falava com Raissa pela internet e sabia onde ela estava escondida com o pai dela, perguntou para ele o que estava acontecendo.

E o pai dele olhando em direção contrária ao filho só disse:

- Raissa te mandou um abraço. Disse que sente a sua falta.

 

Para Charlie dessa vez era diferente da primeira. Ele já sabia o que esperar. Um lugar estranho, com pessoas estranhas em um lugar distante.

Pensava que sabia, mas aparentemente, ele se encontrava em lugar nenhum. Um lugar totalmente branco, chão branco, céu branco, até onde seus olhos podiam alcançar, ele só via a cor branca, as únicas coisas que haviam neste espaço eram três cadeiras de tecido esverdeado com pernas em madeira, com o formato de mini poltronas.

Em uma delas, ele estava sentado. Na outra, a sua nova “amiga”, e a outra estava vazia, sugerindo então que alguém estava para chegar.

- Antes que você me pergunte que lugar é esse e quem sou, vou me explicando antes que o “chefe” chegue.

- Então já posso concluir que essa terceira cadeira é para o “chefe”. Disse ele com um tom de não muita surpresa.

- Isso mesmo. Respondeu ela secamente.

- E já imagino como ele seja. Quando eu o conheci, ele era um senhor de mais ou menos 60 anos e cabelos grisalhos, já deve estar bem velhinho. É ele não? Perguntando com um tom curioso misturado com um tom  debochado.

- Talvez. Na verdade, ele tem muitos rostos. Muitas idades e muitos sexos. Cada hora ele aparece da forma que ele acha conveniente. Ele aparece da forma que ele acha que a pessoa com a qual ele vai falar o ouça melhor. Infelizmente, nós, ainda, nos preocupamos muito com a aparência. E fazendo uma breve pausa, continuou:

- Vamos as explicações preliminares. Primeiro, meu nome é Johan. Sou uma viajante no tempo como você. A única diferença entre nós é que eu fui resgatada diretamente pela “Força” e trabalho diretamente para Ela desde então.

- Força? Perguntou ele.

- Sim.  Dentro de nós, mesmo que as pessoas não acreditem, existe uma força que age sobre nossos pensamentos e nossas ações, na verdade, ela tenta nos direcionar para determinados caminhos. É como se fosse uma força a nos guiar, por isso, este nome. Disse séria.

- Mas eu sempre achei que fossem anjos, coordenados por Deus, que tinham me salvado. Que tinham um plano maior para mim. Que em algum determinado momento eu seria necessário para salvar a humanidade.

- Tá se achando hein bonitão? E deu uma risada cortando o total silêncio que havia naquele lugar e continuou explicando:

- Na verdade, você está certo e errado ao mesmo tempo. A parte que você está certo, é que sim, você foi escolhido, como eu também fui, mas não bem por um Deus e sim por esta “força” que se revela através da própria consciência humana. É como se “alguém” fosse designado para ajudar a manter a ordem das coisas. E essa ordem ou desordem natural acontece de acordo com as vibrações e ações humanas. Não há certo ou errado neste lado de cá. Apenas a continuação do mais inegável círculo contínuo da existência. Humana ou não.

- Não entendi absolutamente nada. Disse ele confuso.

- Você vai entender com o tempo. Eu demorei um bom tempo para entender. Mas você parece mais inteligente que eu, acredito que vai entender mais rápido. Disse ela, olhando para ele de forma enigmática.

De repente, como se materializasse do ar, uma linda mulher loira de cabelos enrolados e batom vermelho, em um vestido justo, aparece sentada na cadeira da frente e com um charuto na mão, dando uma lenta tragada joga a fumaça no rosto de Charlie que espanta com as mãos e dá uma tossida.

- Charlie, há quanto tempo que não nos vemos. Diz aquela bela moça a Charlie.

- E algumas vez nos vimos? Disse Charlie examinando aquele corpo escultural e concluindo a certeza que nunca tinha ouvido aquela voz antes.

- Claro que já. Eu só não estava assim. Me desculpe. Eu ia vir como no dia que nos conhecemos, mas tive um dia muito agitado e ficar mudando a minha aparência a toda hora não é muito simples e rápido como eu gostaria e como foi marcada essa reunião de emergência, não consegui me preparar. E continuando após apagar o charuto no chão, disse:

- Eu que te resgatei da guerra. Eu que disse a você que você ia me ajudar um dia. E esse dia chegou. Disse ela em um tom sério.

E Charlie, com cara de espanto, mas lembrando do que Johan havia explicado sobre o “chefe”, respondeu fazendo uma brincadeira:

- Tá bem melhor assim hein? E depois de uma risadinha meio sem graça, continuou sério: - Eu tinha certeza que esse vírus não era brincadeira e que era ele que iria acabar com a humanidade e que você iria precisar da minha ajuda.

- Vamos por partes. Primeiro, pare de olhar para os meus peitos. Parece que nunca viu mulher antes.

E Charlie, disfarçadamente olhou para baixo, desviando o olhar.

- Segundo. Esse vírus realmente não é brincadeira e é preciso ter cuidado com ele sim, mas não sabemos se ele acabará com a humanidade. Vírus se desenvolvem todos os dias, naturalmente, por mutações genéticas ou não.

- Ou não? Perguntou Charlie já pensando no professor Win.

- Eu sei que o está pensando e a resposta é que você e seus “amigos” que vão ter que descobrir isso. Disse a moça em um tom sério e continuou:

- Quanto a sua ajuda, realmente vamos precisar e você vai trabalhar em conexão com a Johan.

- Mas... Eu que estava querendo a sua ajuda. Não sabemos muito o que fazer, por onde começar, a Raquel está trabalhando na interpretação dos relatórios do professor lá na China e nós estamos no Brasil, de mãos atadas enquanto o mundo inteiro está sendo invadido por um vírus que ninguém sabe lidar. Disse Charlie com ansiedade na voz.

- Eu não posso lhe dizer muito do futuro pois ele quase sempre é incerto, cada atitude diferente faz com que ele mude de direção, consegui lhe trazer para o futuro pois na verdade ele já havia existido e eu voltei para o passado para te buscar, o que está acontecendo agora é o desdobramento desse futuro e a consciência humana atual está tão perdida e sem direção que não estamos conseguindo desenhar um futuro natural e é esse o verdadeiro problema. Disse a “chefe” olhando para a pulseira, a qual parecia ser um relógio e continuou falando:

- O círculo da vida precisa ser mantido. Acredito que Johan já tenha te explicado um pouco como isso funciona. A ordem e desordem fazem parte de um todo que precisa ser mantido.

E Charlie interrompendo a moça, perguntou:

-Isso que eu não entendi muito bem. Nós não estamos sempre lutando pelo bem, para que todo mundo fique feliz e tudo dê certo para todos? Perguntou Charlie com a certeza de uma criança.

- Você já percebeu como sua pergunta é insensata? Desde que o mundo é mundo, a milhões de anos atrás, para haver a perpetuação das espécies, uns tiveram que ser sacrificados para que outros continuassem a viver. O maior e mais forte, acaba dominando o menor e mais fraco e a vida se desenvolveu assim até hoje. De tempos em tempos a própria natureza se renova. Os dinossauros viveram aqui por milhares de anos e com uma grande explosão eles foram extintos. Depois vieram os humanos e muitas civilizações apareceram e desapareceram e isso continuará acontecendo. Não será diferente. O que é bom para um, acaba sendo ruim para o outro. Essa história que o bem sempre vence é uma questão de perspectiva de quem está do lado da história.

- Então você me salvou do meio da guerra para me trazer para um mundo que vai acabar de qualquer jeito? Perguntou Charlie com tom de indignação.

- Não. O mundo não vai acabar. O mundo não acaba, ele apenas se transforma. E ela respirou fundo olhando para aquele céu branco.

- Então quer dizer que a humanidade está correndo o risco de acabar? Ou talvez esta civilização? Charlie perguntou com tom de preocupação.

- Talvez o mundo que conhecemos hoje sim. Mas isso não é necessariamente uma coisa ruim. As transformações ocorrem para evolução dos seres. Respondeu ela como se já tivesse respondido àquela pergunta milhares de vezes.

- Mas se as coisas vão acontecer de qualquer jeito, para que a “Força“  existe? Para que você precisa de mim? Da Johan? Existem mais de nós? Charlie já não sabia mais se queria ter sido salvo na guerra.

- Porque nem sempre todos deixam as coisas acontecerem naturalmente como deveriam. A moça disse com um ar de pressa.

E Charlie fingindo que não havia percebido a pressa da “chefe” continuou perguntando:

- Mas a humanidade tem conhecimento da natureza desses acontecimentos? Que mesmo que pareçam ruins de primeiro momento, eles devem existir?

- A humanidade tem conhecimento dos fatos acontecidos, é claro, mas dificilmente alguém vai concordar que eles são necessários. Ninguém quer o sofrimento, apenas a transformação. E não há transformação sem que o primeiro ocorra. Então sempre tem alguém para atrapalhar essa evolução. Disse ela cruzando as pernas.

- Mas querer salvar a humanidade, encontrar curas para determinadas doenças, proteger a natureza, educar as populações, acabar com a fome e a miséria, são iniciativas que atrapalham a transformação? Charlie despejou tudo em que ele acreditava.

- Sim e não. Como eu disse, depende da ótica que isso é verificado. Salvar a humanidade, vislumbrando o todo, protegendo a natureza, educando as populações, acabando com a fome e a miséria, através da valorização do trabalho honesto, já por si só, evitaria uma série de doenças novas de surgirem, tanto físicas, mentais, quanto espirituais e isso faria com que a humanidade vivesse por mais tempo e melhor, sendo esta a  verdadeira transformação. Mas os interesses financeiros, de ego, poder, atrapalham essa luta pelo todo, fazendo com que cada vez mais a humanidade busque as riquezas da terra para si, forçando a “força” a agir para que a evolução de qualquer maneira possa ser alcançada.

- Qualquer maneira? Perguntou Charlie preocupado.

- Fazemos o que for necessário. Essa é a nossa “Força”. Você sabe como é. Guerra é guerra. Disse ela firmemente e continuou:

- E uma coisa importante que você tem que saber agora. Você já contou para várias pessoas que você é um viajante no tempo. Eles não acreditam e não devem acreditar. Essa é a nossa vantagem. Não conte mais a ninguém, pois você encontrará pelo caminho “certas pessoas” que vão saber quem você é e vão querer atrapalhar o seu “trabalho”.

- Certas pessoas? Tem alguém que tem conhecimento da “Força”?

- Claro. Como eu disse, o equilíbrio da vida, vem da existência da dualidade que está presente em toda realidade natural. São os conceitos de Yin e Yang, não existe o dia sem a noite, nem a vida, sem a morte, da mesma maneira que existe a “ Força” querendo exercer o direito da natureza seguir seu curso naturalmente, existem grupos que insistem em barrar essa fluidez, acreditando que suas incursões podem “ salvar” algo de alguém.

- Mas quem são eles? Perguntou Charlie já pensando em como se defender.

- Você logo irá encontrar algum deles por aí. Johan vai lhe ensinar a reconhecê-los. Mas isso será um papo para outro momento. Já estou atrasada. Tenho que voltar.

- Voltar? Para onde? Charlie perguntou, não querendo que a “chefe” fosse embora tão rápido.

- A pergunta, não é para onde e sim para quando. E sumiu de repente.

 

Lembre-se de viver.