Capítulo 5 - Ex ore parvulorum veritas

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Observando de cima, é só mais um carro na estrada passando em meio as árvores altas, dentro do carro, um casal, de uns 30 e poucos anos, rindo e se divertindo, rumo as suas merecedoras férias.

Anthony e Michael eram dois jovens que se conheceram há uns 15 anos atrás ainda quando cursavam o ensino médio. Thony, como todos o chamavam, era de descendência alemã, dono de cabelos e pele muito claros, corpo atlético, sempre com um sorriso encantador no rosto e rindo de praticamente tudo, encantou Michael desde o primeiro papo. Michael na época era conhecido como o esquisitão da turma, sempre na dele, estudioso e no canto da sala, não queria muito papo com ninguém.

Thony sempre estava rodeado de amigos, principalmente garotas, que se derretiam ao ouvir o tom grave da sua voz, era bom aluno em geral, mas matemática tirava seu sono e se não enfiasse aquelas equações na cabeça, não sabia se conseguiria passar naquele ano.

E foi a matemática que o levou a Michael, sabendo que ele era um dos melhores alunos da sala, Thony o procurou pedindo ajuda. Michael não tinha muita experiência como professor, muito menos com amigos, mas topou ajudar e assim viraram grandes amigos e daquela relação de amizade, a paixão aflorou e o amor se consolidou anos depois.

Essa união trouxe muitas coisas boas, mas também momentos difíceis para os dois. A família de Thony não enxergava ele como um homossexual, mas quando contou sobre sua relação com Mike, apelido carinhoso que ele mesmo havia dado, como Mike sempre frequentava a casa deles como amigos e todos na família já gostavam muito dele, aceitaram essa relação numa boa, faziam até piadas das situações e faziam questão de Mike sempre estar por perto.

Bem diferente aconteceu com Michael. Filho de pai extremamente tradicional e preconceituoso e mãe submissa ao pai, durante muito tempo escondeu essa relação da sua família. A única que sabia era sua irmã, Brenda, que sempre o apoiava e ajudava a encobrir os “rastros”. Ela tinha um coração de ouro e conhecia bem o pai, pois por algumas vezes tinham provado do peso da sua mão.

Mas um dia o pai tinha que saber. Sr. Füter, assim o chamavam. Já no último ano da universidade, Michael e Thony haviam saído para uma festa entre amigos e desta vez, Brenda tinha sido convidada e por um milagre, seu pai havia a deixado ir, afinal, ela acabava de completar 18 anos.

Era uma festa animada, na casa de uns amigos, mas bem tranquila até, perto das festas que ocorriam normalmente na universidade. Tinha cerveja, jogo de poker, sinuca e risadas. Dois casais no sofá da sala, se assustando com as cenas de Fred na TV, outro casal, se beijando em um dos cantos, meninas dançando em uma pista improvisada em meio ao corredor. Normalmente a festa se estenderia para a área do jardim, mas naquele dia, chovia e chovia muito.

O som alto, ultrapassava os vidros das janelas, mas era abafado pelo som dos raios e trovões. Brenda, se chacoalhava com aquela música alta, para um lado e para o outro e com uma bebida na mão, mergulhava em uma sensação de êxtase e liberdade. Michael, que depois de tantos anos com Thony, já estava acostumado com estas festas, não que realmente gostasse tanto delas, mas vendo sua irmã tão feliz aquele dia, só podia sorrir e se deixando levar por aquele momento, resolveu colocar sua velha timidez de lado, encostou Thony no balcão e o beijou na frente de todos como jamais havia feito.

Ninguém ali se espantou ou achou algo estranho, pois todos sabiam do amor dos dois e sua relação. Mas havia alguém do lado de fora todo encharcado olhando pelo vidro da janela e este alguém ficou perplexo com o que viu.

Sr. Fürter, estava ali para buscar sua filha Brenda, pois já era para ela estar em casa há 30 minutos e não aceitava atrasos, havia tocado a companhia, mas com o som alto da música somado aos trovões e raios ao lado de fora, ninguém o ouviu.

 E a procurando pela janela, se deparou com aquela cena do filho, beijando, aquele, que para ele até o momento se tratava do melhor amigo. Seu corpo congelou. Tantas cenas passaram pela cabeça dele, tantos momentos que ele via seu filho com o “amigo”. Por muitas vezes ele percebia olhares entre eles, mas nunca quis acreditar. Seu preconceito o impedia de ver o que estava a sua frente. E ele só pensava que havia sido traído. Por todos. Todos sabiam. Todos deveriam saber. Só ele que não. Ele começava a imaginar todos rindo pelas suas costas. Imaginava primeiro seus filhos e esposa rindo do “trouxa”. Depois começou a imaginar seus amigos, apontando para ele e rindo do pai do filho “veado”. Tudo girava. Naquele momento, cada poro do seu corpo parecia suar e um calor vindo das pernas subindo pela barriga, tomou conta do seu corpo inteiro e um acesso de raiva o invadiu e com um chute na porta invadiu aquela casa.

A cena que se instaurou nos próximos minutos, assustaria até o Fred da TV. As meninas que estavam no corredor dançando, assustadas, gritaram e saíram correndo e com uma arma na mão, pois era militar da reserva do exército americano, empurrava quem estava na sua frente para chegar até seu filho. Gritando nomes horríveis e espumando de raiva, nem se importou mais em procurar por sua filha Brenda, apesar de também estar se sentindo traído por ela, mas na sua cabeça, ele só queria acabar com “aquilo”. E estando a um metro de Michael, apontou a arma para o seu peito. Thony estava aterrorizado e pedia por favor para que Sr. Furter parasse com aquela loucura.

Parecia que naquele momento, o mundo havia parado. A música parou de tocar, a chuva parou de cair, todos na casa olhavam para aquela cena de terror que estava prestes a ocorrer. E quando aquele Sr., visivelmente perturbado, estava prestes a apertar o gatilho, uma garrafa levada pelas mãos de Brenda se quebrou em sua cabeça, o que o fez cair desmaiado no chão.

A festa tinha acabado. Todos que podiam, saíram de lá o mais rápido possível. Ambulância e Polícia foram chamados. Havia muito sangue espalhado pela sala. Os irmãos foram para delegacia prestar depoimento, juntamente com o dono da casa e alguns poucos que ficaram ali para confirmar a história.

O Pai foi levado ao hospital. Ainda estava vivo. Passou alguns dias internado para cuidar dos ferimentos da cabeça e realizar cirurgia para retirada dos estilhaços. No hospital recebeu tratamento psicológico e percebeu que sua esposa não sabia de nada tanto quanto ele e pelo menos dela então, ele não tinha mágoa ou rancor, apesar de sempre culpá-la pela “transformação” do filho.

Seus filhos tiveram que imediatamente se mudar. Michael foi morar com Thony em outro Estado, a Califórnia, e Brenda ficou com eles até entrar na universidade.

Nenhum dos dois nunca mais falou com o pai, somente ligavam para a mãe quando sabiam que ele não estaria em casa.

Depois de tantos anos, todos tinham encontrado seu caminho. Thony e Mike, formavam um casal adorado, formadores de opinião e líderes de movimentos de luta contra o preconceito, não só com relação a homossexualidade, como também racial. Apesar de brancos e americanos, o seu círculo de amizade era formado em sua maioria por negros e latinos.

Eram proprietários de uma gráfica grande no centro de São Francisco e trabalhavam na área de publicidade desde que saíram do Kansas, Thony cheio de idéias criativas e Mike sempre muito bom com números, era o par perfeito para uma empresa dar certo.

Brenda se formou em Fisioterapia na universidade e com a ajuda do irmão e cunhado, abriu uma clínica e que graças a sua bondade e empatia, recebia muitos clientes. Na cidade de Minneapolis, ela casou e teve dois filhos, um menino e uma menina, gêmeos, e apesar de se falarem muito por telefone e por conversas via internet, aquele ano era a primeira vez que os tios iam ver os sobrinhos pessoalmente.

Seriam mais de 30 horas de carro, mas os dois estavam aproveitando cada segundo e estavam muito felizes em ver a irmã de Michael. Fazia anos que não se viam pessoalmente e a vontade de brincar com os sobrinhos era demais, eles não conseguiam parar de falar sobre isso um minuto sequer e a estrada se tornava cada vez mais bonita aos olhos deles.

 

As crianças não mentem.